Descolonização e Neo-Colonialismo

por Francisco Carlos Teixeira


Passada a grande maré imperialista e as redivisões decorrentes da II Guerra Mundial (sendo o principal acontecimento o fim do Império colonial italiano, principalmente em favor dos ingleses), o movimento anticolonial tornou-se dominante na África. Tratava-se, para as potências coloniais, de assegurar a presença ocidental no continente mesmo na situação precária em que se encontravam as metrópoles.

Tanto a França como a Inglaterra perceberam que não poderiam deter o processo de emancipação dos países homogeneamente negros, principalmente na África equatorial.

Eram áreas densamente povoadas, com grandes reservas de matérias-primas e minerais – café, amendoim, cacau, óleos, fibras, algodão, cobre, ouro, diamantes e, pouco depois, petróleo – e com escassa presença branca, mas com uma importante elite negra formada em universidades européias e americanas, convencidas pelos ideais de africanidade e negritude e, mais ou menos, tocadas por formas variadas de socialismo.

Assim, Senegal e Gana foram casos paradigmáticos de independência nacional, formando as bases para um profundo sentimento de africanidade. Dois outros grupos de países, ao norte e ao sul da África, apresentavam contudo condições bem diferenciadas de acesso à independência.

Ao norte, em especial na Argélia, uma forte minoria branca opunha-se ferozmente a qualquer projeto de autonomia, mesmo enfrentando uma maioria islâmica cada vez mais organizada, mobilizada ideologicamente e com forte apoio exterior (no caso, proveniente do Egito nacionalista de Gamal Abdel Nasser).

Ao sul, por razões semelhantes, os colonos exigiam sua independência. Calcados na experiência sul-africana, que evoluíra da condição de Estado autônomo no interior da Comunidade Britânica das Nações, desde de 1910, para a condição de Estado soberano desde 1948, os colonos brancos da chamada Rodésia (hoje Zimbabwe) articulam sua independência como uma forma de impedir que o processo de descolonização apontasse para a emergência de um Estado negro onde perderiam suas condições privilegiadas.

Da mesma forma, a permanência do colonialismo português – com seu aspecto paternalista, autoritário e culturalista, donde a denominação de “ultracolonialismo” – com as grandes colônias do Moçambique e de Angola, somando-se ao regime racista da Rodésia e ao domínio sul-africano sobre o antigo Sudoeste Africano Alemão (atual Namíbia), criaram ao sul do continente um poderoso bloco colonial, pró-ocidental e inteiramente dependente da economia e dos investimentos americanos, ingleses e holandeses.

A Guerra Fria na África


A grande novidade é, sem dúvida, o fato de que o centro de gravidade desse imenso glacis neocolonial ter se deslocado da Europa e, interiorizando-se, residir, principalmente a partir de 1958 (na administração do premiê Hendrik Verwoerd, 1958-1966), na própria África do Sul.

Com uma numerosa população – algo entorno de 40 milhões de habitantes, dos quais apenas 12% são brancos –, vastas reservas minerais como ouro, platina, diamantes, cobre e urânio, além de uma próspera agricultura e uma poderosa indústria, a República Sul-Africana aproveitou-se do clima de Guerra Fria para construir uma poderosa panóplia militar, atingindo até o controle e a fabricação de armas nucleares, químicas e biológicas.

Com a divisão bipolar do mundo, entre Estados Unidos e URSS, a África do Sul assumiu um novo papel geoestratégico central.

A paralisia de qualquer movimento reformista e a consequente expansão dos movimentos de libertação nacional, em especial no sul do continente, muitos de cunho marxista, lançava os regimes autoritários e racistas em vigor no sul da África, diretamente no âmbito do chamado Ocidente, contra uma pretensa e nova estratégia africana da URSS.

Os regimes colonial português e racista na África do Sul, Rodésia e Namíbia mostraram-se absolutamente contrários a qualquer possibilidade de auto-reforma, recusando sistematicamente todas as recomendações das Nações Unidas e da Organização da Unidade Africana (OUA).

A iniciativa de organizar os impérios coloniais sob uma forma mais leve e dinâmica coube inicialmente ao ingleses, preocupados com o potencial independista de suas coloniais consideradas “brancas” (Canadá, Nova Zelândia, Austrália e África do Sul), capazes de imitar o comportamento dos ex-súditos norte-americanos.

Foi assim que surgiram as chamadas “conferências imperiais”, desde 1911, e que culminam, em 1926, na criação da Comunidade Britânica das Nações.

O novo modelo organizativo do império deveria valer exclusivamente para as colonias de povoamento europeu. Contudo, depois de 1945, o Partido Trabalhista, principal força organizativa da descolonização na Inglaterra, decidiu transformar a Comunidade Britânica na ferramenta básica de manutenção dos laços econômicos, políticos e estratégicos do antigo império.

Os franceses, ao contrário, reagiram algumas vezes mais duramente, tentando manter o império – tanto na Ásia quanto na África – por mais tempo, gerando conflitos sangrentos na Indochina, Argélia e em Madagascar.

Foi, contudo, na antiga África Ocidental Francesa e na África Equatorial que conseguiram os maiores sucessos em manter os antigos laços de dependência com as novas nações que emergiam do processo de descolonização.

O episódio Biafra


Em alguns momentos, o processo de descolonização descambava claramente para crises de extrema gravidade, com a tentativa das potências ultracoloniais e racistas do Sul da África em garantir pontos de apoio e manter uma presença mais atuante na África ocidental.

Foi assim, através do apoio de Portugal e da África do Sul à secessão dos ibos, cristãos e ocidentalizados, frente à maioria islâmica da Nigéria, que a guerra civil no país, denominada Guerra de Biafra (1967-1970), transforma-se numa terrível catástrofe humanitária do continente.

Assim, a riqueza petrolífera do país ibo, a grande esperança de desenvolvimento de toda a Nigéria, gera dois campos de força opostos: França, Portugal, África do Sul e Rodésia apóiam a República de Biafra, enquanto Inglaterra e Estados Unidos sustentam a federação nigeriana.

A Guerra de Biafra, com seus quase um milhão de mortos, deixa uma lição para o conjunto da África: a intangibilidade das fronteiras herdadas do período colonial.

Com apoio da OUA, a maioria dos Estados africanos concorda que as fronteiras existentes, por mais artificiais e injustas que sejam, representavam uma expectativa de paz e de convivência comum, enquanto qualquer tentativa de alteração do mapa colonial poderia lançar as jovens nações em um redemoinho de destruição mútua.

Ao mesmo tempo, a África do Sul obtinha ampla liberdade de ação para preservar os interesses ocidentais na chamada da “Rota do Cabo”. Particularmente após 1967, quando em virtude do conflito árabe-israelense o Canal de Suez foi fechado ao tráfego internacional, a rota ao sul do continente, chamada rota do Cabo, readquiriu um imenso valor estratégico, conhecendo um intenso fluxo de superpetroleiros, indispensáveis ao abastecimento das grandes economias industriais do Atlântico Norte.

Da mesma forma, as linhas aéreas em demanda do Cone Sul, da América do Sul, da Índia, Austrália e da chamada Insulíndia – Malásia, Filipinas, Indonésia – dependiam das condições de segurança e abastecimento em Pretória, Johanesburgo ou no Cabo, o que fez com que a Otan instalasse um poderoso sistema de detecção aéro-espacial em Simonstown (junto à Cidade do Cabo).

A URSS e a África


Com o desmoronar do império colonial português, a partir de 1974, o grande cinturão de segurança em torno da África do Sul perde sua invulnerabilidade. Angola e Moçambique deixam de ser escudos protetores, bem como fornecedores de mão-de-obra dócil e de recursos naturais para Pretória; o movimento de libertação da Namíbia – Swapo – e a resistência negra na Rodésia colonial se avolumam, enquanto um movimento simultâneo exterior e interior questiona o regime de apartheid na própria África do Sul.

Os soviéticos, por sua vez, aproveitando-se da paralisia provisória dos Estados Unidos, aceleram a penetração na Somália e na Etiópia. Com um regime marxista já estabelecido no Iêmen, a outra margem do Estreito do Bab el Mandeb, os soviéticos construem amplas bases aéreas e navais em Massua, na Etiópia, e na Ilha de Dhalak, no Mar Vermelho, colocando a estratégica região do Chifre da África fora do controle ocidental. Pela primeira vez desde sua criação, no século XIX, o Canal de Suez estava sob risco real de estrangulamento, enquanto o acesso ao Oceano Índico e o Golfo Pérsico abria-se aos soviéticos.

Aos poucos, a Guerra Fria, em sua última fase – a chamada Segunda Guerra Fria, a partir de 1979 –, instala-se no coração da África. Os Estados Unidos, até então pouco envolvidos nos negócios africanos – dada a ação francesa e sul-africana – voltam-se diretamente para o continente, procurando barrar a crescente presença soviética no continente.

Através da CIA e do exército da África do Sul, os norte-americanos, ao lado da China Popular, apóiam os movimentos mais reacionários do continente, como a Unita, em Angola, Charles Taylor, na Serra Leoa, inúmeros grupos terroristas no Zaire e em Moçambique, além, é claro, do racista National Party, em Pretória. Quando tais enfrentamentos desbordam em guerra aberta, como no Zaire, Angola ou na Etiópia, os soviéticos lançam mão de tropas expedicionárias cubanas, que passam a agir amplamente no continente.

Em algum momento, no final dos anos 70, a URSS parece ter adquirido uma posição permanente e privilegiada na África, com pontos de apoio na Líbia, na Etiópia, por algum tempo na Somália, na Guiné, no Congo/Brazzaville, em Angola e Moçambique, além de grande simpatia em países da chamada “linha de frente” do enfrentamento ao apartheid, como a Zâmbia e a Tanzânia.

A África e as novas ameaças


Entretanto, a partir de 1985, com a crise geral do sistema soviético, iniciar-se-ia o começo da retirada soviética, com a retração da ação cubana, e o colapso de vários regimes pró-soviéticos, sendo a Etiópia o melhor exemplo. O vazio estratégico criado pela retirada dos soviéticos e cubanos acabam gerando dois movimentos opostos. Em alguns países, como a Etiópia e a Somália, abrem-se períodos de crise, instabilidade e guerra civil, culminando no caso da Etiópia, na secessão da Eritréia.

No caso da Somália, bem mais complexo e dramático, chega-se ao completo colapso das estruturas estatais existentes, com a pulverização do Estado-Nação e a hegemonia de “senhores da guerra” locais, muitas vezes apoiados por organizações terroristas, como a Al Qaeda e o Ansar-El-Islam.

Já em outros países, como em Angola e Moçambique, a desaparição do clima de enfrentamento Ocidente/Oriente acaba por abrir caminho, não sem muita dor e destruição, a processos de paz, de frágil densidade. Contudo, a situação tornar-se-ia bem mais favorável à consolidação de regimes estáveis e ao início da construção de estruturas do Estado-Nação.

Na Rodésia e na África do Sul, por sua vez, a conversão dos partidos de resistência, como o Congresso Nacional Africano, às normas da representatividade, ao lado da intensidade da resistência local e da condenação externa, acaba por levar a auto-reforma dos regimes, em especial a partir de 1990, com a legalização do CNA, o fim do apartheid em 1991 e, enfim, a eleição de Nelson Mandela em 1994.

Mas outros países não tiveram a mesma sorte: o desmoronar das ditaduras que eram sustentadas por potências neocolonais, como no Congo/Kinshasa, em Ruanda, na Libéria, entre outros, acaba por gerar grande instabilidade política, gerando um estado contínuo de guerra, perpassados por genocídios brutais, como em Ruanda em 1992 e 1994.

Paralelamente com a expansão das guerras locais e dos genocídios, a fome reaparece em vastas regiões avassaladas por tragédias climáticas, como no largo cinturão do Sahel, do Niger ao Sudão, ou pela guerra permanente, como na Etiópia e na Somália. No sul da África, bem como na África Oriental, as epidemias de turberculose e aids atingem parcelas assustadoramente amplas da população local, enquanto na África Equatorial a malária, o dengue e o vírus Ebola são as razões das elevadas taxas de mortalidade.

No pós-Guerra Fria abriu-se um novo ciclo de expansão dos interesses ocidentais na região, em especial uma nova expansão anglo-americana, tendo como países-pivô na África Oriental e Austral a nova Uganda, pós-Idi Amim, e a nova África do Sul. Os objetivos, neste momento, dirigem-se para a dominação do Congo/Kinsahasa, com suas riquezas minerais, com a eliminação da hegemonia francesa local. Cabinda, com suas riquezas petrolíferas, é um alvo secundário, porém bastante importante.

Um segundo vetor da continuidade da expansão anglo-americana volta-se para países na África Ocidental: Serra Leoa/Libéria/Costa do Marfim/Gana, o que representaria a securitizaçao do Golfo da Guiné, com o controle das fontes petrolíferas da Nigéria até São Tomé e Príncipe, além das ricas jazidas de ouro e diamantes da região.

A desestruturação das instituições estatais, depois de 1989, sob o impacto da redemocratização de vários regimes locais, além da imposição de um brutal receituário liberal e antiestado patrocinado pelo FMI, acaba por dar um novo alento às soluções militares.

O antigo ciclo de ditaduras militares na África, en tre 1961 e 1989, parece fazer seu retorno ao cenário político local a partir do golpe de Estado na Costa do Marfim, em 1999, seguido de golpes e tentativas por toda a África Ocidental e Equatorial.

Da mesma forma, a norma férrea da intangibilidade das fronteiras parece ter sido abandonada, com a fragmentação da Etiópia, da Somália, das ameaças na Gâmbia e no Senegal, além da continuidade da guerra no Congo/Kinsahasa e no Sudão.

Em suma, no alvorecer do século XXI, o continente africano é, ainda, mais pobre, complexo e perpassado pelos flagelos da guerra, da fome e das doenças do que no início do processo de descolonização na década de 60 do século XX.



Francisco Carlos Teixeira é professor Titular de Historia Moderna e Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

 

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