Autor

Thiago Piccoli

 

O conto do cartão de crédito

- Aceita cartão de crédito?

- Não senhor, só trabalhamos com dinheiro.

Parece história de filme, mas aquele era o maior supermercado da cidade, e não aceitava cartão de crédito. O dono, vindo de uma família paupérrima do extremo oriente do país acreditava que a realidade era feita de papel. As tecnologias não convenciam aquele empresário. Ele não conseguia acreditar na movimentação de dinheiro através de ondas eletromagnéticas. Mas o mundo já estava tomado por isso.

Era tempo de renovação, de reconquistas. Os países periféricos se recuperavam de duras ditaduras. No Brasil, o governo militar acabara com as esperanças do povo. No Chile, Salvador Allende havia sido deposto pelo temido General Augusto Pinochet. Cuba era o exemplo de nação periférica bem sucedida.

Ainda bem que aqueles tempos acabaram. Cuba hoje é uma nação extremamente capitalista, com toda a parafernália de letreiros luminosos, coca-cola e ganância. Naquela época, nem pensar nisso. Poderia gerar uma onda de suicídios em massa. Fidel Castro agora já está em eterno descanso ao lado de seu saudoso amigo Che Guevara.

Mas, voltando ao presente, quem hoje imaginaria alguém comprando frutas com dinheiro de papel? Isso é coisa do passado. Colecionadores adoram se reunir na ponta do parque e imaginar situações nostálgicas. Quase que brincam de casinha.

E até brincam, porque, hoje em dia, não se usa mais dinheiro de papel. Assim como na época, muita gente queria reviver os anos 60 de John Lennon e Syd Barrett. E muita gente conseguiu combustados por muitas drogas lisérgicas que eram vendidas à luz do dia ou simplesmente arrancadas da terra. Imagine achar um pedaço de grama hoje em dia! Muita gente nem sabe o que é "grama".

Na era do concreto, as aventuras lisérgicas com cogumelos ficam extremamente limitadas a quem tem condições financeiras de importar de países como Nova Zelândia ou Congo.

Naquele dia, onde nossa história havia começado, tenho certeza de que o dono daquele supermercado não tinha cogumelo disponível, mas, mesmo assim, estava fora de si.

Acordou no mesmo horário de sempre e dirigiu-se a seu estabelecimento comercial. Ele sabia que o seu era o maior e também o melhor. Por isso acordava sempre de bom humor.

"Bolsa de Tóquio fecha em alta com ações do grande supermercado da cidade"

E isso saía quase toda semana nos noticiários de televisão e rádio.

Por isso, as pessoas sempre iam lá. Pois achavam ser o melhor.

Tudo estava normal. Seu carro dirigiu-se automaticamente pela mesma rota. Um dia ensolarado fez com que o sistema de navegação funcionasse perfeitamente. No mesmo horário dos outros dias, lá estava ele abrindo as portas do supermercado.

Tinha orgulho de sua ocupação. Vivia bem, às custas da fome dos outros. Aquele prédio era tudo que tinha, o que fazia dele uma pessoa rica, mas que não gastava seu dinheiro. Apenas guardava temendo alguma tragédia.

Lá pelos meados do pós-meridian um cheiro a queimado foi sentido pelo atendente do açougue. Achou normal e resolveu ver o que aconteceria. E aconteceu o pior. De repente todo o supermercado começou a pegar fogo. Lentamente, ao som de Lucy In The Sky With Diamonds tudo ia defumando, tornando cinzas. Uma cena linda para um bom filme sobre o Apocalipse.

E o final do filme já estava sendo escrito em seguida. Com medo de ser roubado durante o incêndio, o dono do supermercado ordenou que fechassem as portas evitando saques. A maioria das pessoas que transitavam pelo supermercado tentavam desesperadamente achar outra saída, mas sem resultado.

Mais de 350 pessoas perderam a vida para que uma pessoa não tivesse prejuízo financeiro. Além de perder toda sua mercadoria, perdeu clientes, a razão, e suas esperanças queimaram junto com todo seu dinheiro nas gavetas dos caixas registradores, por não aceitar cartão de crédito.

eNT...

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eNT . Revista Eletrônica Nádia Timm . 2006