DIREITO PENAL DO INIMIGO

Rogério Greco

Introdução
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A mídia, no final do século passado e início do atual, foi a grande propagadora e divulgadora do movimento de Lei e Ordem.

Profissionais não habilitados (jornalistas, repórteres, apresentadores de programas de entretenimento, etc.) chamaram para si a responsabilidade de criticar as leis penais, fazendo a sociedade acreditar que, mediante o recrudescimento das penas, a criação de novos tipos penais incriminadores e o afastamento de determinadas garantias processuais, a sociedade ficaria livre daquela parcela de indivíduos não adaptados.


Como bem destacou Leonardo Sica,o terreno fértil para o desenvolvimento de um Direito Penal simbólico é uma sociedade amedrontada, acuada pela insegurança, pela criminalidade e pela violência urbana.


Não é necessária estatística para afirmar que a maioria das sociedades modernas, a do Brasil dramaticamente, vive sob o signo da insegurança.

O roubo com traço cada vez mais brutal, ‘seqüestros-relâmpagos’, chacinas, delinqüência juvenil, homicídios, a violência propagada em ‘cadeia nacional’, somados ao aumento da pobreza e à concentração cada vez maior da riqueza e à verticalização social, resultam numa equação bombástica sobre os ânimos populares.


O convencimento é feito por intermédio do sensacionalismo, da transmissão de imagens chocantes, que causam revolta e repulsa no meio social.

Homicídios cruéis, estupros de crianças, presos que, durante rebeliões, torturam suas vítimas, corrupções, enfim, a sociedade, acuada, acredita sinceramente que o Direito Penal será a solução de todos os seus problemas.


O Estado Social foi deixado de lado para dar lugar a um Estado Penal.

Investimentos em ensino fundamental, médio e superior, lazer, cultura, saúde, habitação são relegados a segundo plano, priorizando-se o setor repressivo.

A toda hora o Congresso Nacional anuncia novas medidas de combate ao crime.


Como bem enfatizou João Ricardo W. Dornelles, o mito do Estado Mínimo é sublinhado, debilitando o Estado Social e glorificando o ‘Estado Penal’.

É a constituição de um novo sentido comum penal que aponta para a criminalização da miséria como um mecanismo perverso de controle social para, através deste caminho, conseguir regular o trabalho assalariado precário em sociedades capitalistas neoliberais.


Sempre vem a lume o exemplo norte-americano, principalmente do movimento denominado Tolerância Zero, criado no começo da década de 90, na cidade de Nova York.


Naquela oportunidade, o então prefeito de Nova York, Rudolph Giuliani, após o sucesso de sua campanha eleitoral, em 1993, assume o cargo de chefe do Poder Executivo municipal, dando início ao plano denominado Tolerância Zero, juntamente com o chefe de polícia William Bratton.

Nas precisas colocações de Loïc Wacquant, essa teoria, jamais comprovada empiricamente, serve de álibi criminológico para a reorganização do trabalho policial empreendida por William Bratton, responsável pela segurança do metrô de Nova York, promovido a chefe de polícia municipal.

O objetivo dessa reorganização: refrear o medo das classes médias e superiores – as que votam – por meio da perseguição permanente dos pobres nos espaços públicos (ruas, parques, estações ferroviárias, ônibus e metrô etc.).

Usam para isso três meios: aumento em 10 vezes dos efetivos e dos equipamentos das brigadas, restituição das responsabilidades operacionais aos comissários de bairro com obrigação quantitativa de resultados, e um sistema de radar informatizado (com arquivo central sinalético e cartográfico consultável em microcomputadores a bordo dos carros de patrulha) que permite a redistribuição contínua e a intervenção quase instantânea das forças da ordem, desembocando em uma aplicação inflexível da lei sobre delitos menores tais como embriaguez, a jogatina, a mendicância, os atentados aos costumes, simples ameaças e ‘outros comportamentos anti-sociais associados aos sem-teto’, segundo a terminologia de Kelling.


Também merecem destaque as críticas realizadas por Jock Young, quando condena a política de tolerância zero:


Como manobra que objetiva limpar as ruas de ‘destroços’ humanos; como parte do processo de exclusão concomitante à emergência de uma sociedade com grande população marginalizada e empobrecida, a qual deve ser dominada e contida – um processamento atuarial que se preocupa mais com saneamento do que com justiça.

Pois os felizes compradores nos shoppings não podem ser perturbados pelo grotesco dos despossuídos, que bebem em pleno dia.


A política de tolerância zero é uma das vertentes do chamado movimento de Lei e Ordem. Por intermédio desse movimento político-criminal, pretende-se que o Direito Penal seja o protetor de, basicamente, todos os bens existentes na sociedade, não se devendo perquirir a respeito de sua importância.

Se um bem jurídico é atingido por um comportamento anti-social, tal conduta poderá transformar-se em infração penal, bastando, para tanto, a vontade do legislador.


Nesse raciocínio, procura-se educar a sociedade sob a ótica do Direito Penal, fazendo com que comportamentos de pouca monta, irrelevantes, sofram as conseqüências graves desse ramo do ordenamento jurídico.

O papel educador do Direito Penal faz com que tudo interesse a ele, tendo como conseqüência lógica desse raciocínio um Direito puramente simbólico, impossível de ser aplicado.

Discorrendo sobre o simbolismo do Direito Penal, Nilo Batista, Zaffaroni, Alagia e Slokar, com maestria, prelecionam:


Para a lei penal não se reconhece outra eficácia senão a de tranqüilizar a opinião pública, ou seja, um efeito simbólico, com o qual se desemboca em um Direito Penal de risco simbólico, ou seja, os riscos não se neutralizariam, mas ao induzir as pessoas a acreditarem que eles não existem, abranda-se a ansiedade ou, mais claramente, mente-se, dando lugar a um Direito Penal promocional, que acaba se convertendo em um mero difusor de ideologia.


Ou ainda, conforme aduz Cláudio do Prado Amaral, usa-se indevidamente o Direito Penal no ledo engano de estar dando retorno adequado a toda criminalidade moderna, mas que em realidade não faz mais que dar revide a uma reação meramente simbólica, cujos instrumentos utilizados não são aptos para a luta efetiva e eficiente contra a criminalidade.


Não se educa a sociedade por intermédio do Direito Penal.

O raciocínio do Direito Penal Máximo nos conduz, obrigatoriamente, à sua falta de credibilidade.

Quanto mais infrações penais, menores são as possibilidades de serem efetivamente punidas as condutas infratoras, tornando-se ainda mais seletivo e maior a cifra negra.


Beccaria já dizia, em 1764, que “a certeza de um castigo, mesmo moderado, sempre causará mais intensa impressão do que o temor de outro mais severo, unido à esperança da impunidade [...]”.


Para os adeptos do movimento de Lei e Ordem, as penas ditas alternativas, que evitam o desnecessário encarceramento do agente que praticou uma infração penal de pouca ou nenhuma importância, estimula o cometimento de outros delitos.


Ralf Dahrendorf, criticando o raciocínio das penas substitutivas, assevera:
Uma teoria penal que abomina a detenção a ponto de substituí-la totalmente por multas e trabalho útil, por ‘restrições ao padrão de vida’, não só contém um erro intelectual, pois confunde lei e economia, como também está socialmente errada.

Ela sacrifica a sociedade pelo indivíduo. Isso pode soar a alguns como incapaz de sofrer objeções, até mesmo desejável. Mas também significa que uma tal abordagem sacrifica certas oportunidades de liberdade em nome de ganhos pessoais incertos.

Ser gentil com infratores poderá trazer à tona a sociabilidade escondida em alguns deles. Mas será um desestímulo para muitos, que estão longe do palco criminoso, de contribuir para o processo perene de liberdade, que consiste na sustentação e na modelagem das instituições criadas pelos homens.


Assim, resumindo o pensamento de Lei e Ordem, o Direito Penal deve preocupar-se com todo e qualquer bem, não importando o seu valor.

Deve ser utilizado como prima ratio, e não como ultima ratio da intervenção do Estado perante os cidadãos, cumprindo um papel de cunho eminentemente educador e repressor, não permitindo que as condutas socialmente intoleráveis, por menor que sejam, deixem de ser reprimidas.


Obviamente que tal raciocínio, por mais que traga um falso conforto à sociedade, não pode prosperar. Isso porque a própria sociedade não toleraria a punição de todos os seus comportamentos anti-sociais, aos quais já está acostumada a praticar cotidianamente.

O mais interessante desse raciocínio é que somente gostamos da aplicação rígida do Direito Penal quando ela é dirigida a estranhos, melhor dizendo, somente concebemos a aplicação de um Direito Penal Máximo quando tal raciocínio não é voltado contra nós mesmos, contra nossa família, contra nossos amigos, enfim, Direito Penal Máximo somente para os “outros”, e, se possível, nem o “mínimo” para nós.


Os adeptos, portanto, do movimento de Lei e Ordem, optando por uma política de aplicação máxima do Direito Penal, entendem que todos os comportamentos desviados, independentemente do grau de importância que se dê a eles, merecem o juízo de censura a ser levado a efeito pelo Direito Penal.


Na verdade, o número excessivo de leis penais, que apregoam a promessa de maior punição para os delinqüentes infratores, somente culmina por enfraquecer o próprio Direito Penal, que perde seu prestígio e valor, em razão da certeza, quase absoluta, da impunidade.


Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, citando H. Packer, afirmam com precisão:


Como refere Packer, cada hora de labor da polícia, do ministério público, do tribunal e das autoridades penitenciárias gasta nos domínios marginais do direito criminal, é uma hora retirada à prevenção da criminalidade séria.

Inversamente, cada infracção trivial ou duvidosa eliminada da lista das infracções criminais representa a libertação de recursos essenciais para uma resposta mais eficaz às prioridades cimeiras do sistema penal.


Luiz Luisi, com brilhantismo, nos faz lembrar que no nosso século têm sido inúmeras as advertências sobre o esvaziamento da força intimidadora da pena como conseqüência da criação excessiva e descriteriosa de delitos.

Francesco Carnelutti fala em inflação legislativa, sustentando que seus efeitos são análogos ao da inflação monetária, pois ‘desvalorizam as leis, e no concernente as leis penais aviltam a sua eficácia preventiva geral’.


Em recente publicação – onde o fenômeno da hipertrofia do Direito Penal é ampla e exaustivamente analisado –, Carlos Enrico Paliero, fala em crescimento ‘patológico’ da legislação penal.


Todavia o fenômeno do crescimento desmedido do Direito Penal também ocorre no mundo anglo-saxão.

Herbert Packer, em um livro intitulado The limits of criminal sanction, registra que a partir do século passado houve um enorme alargamento das leis penais pelo fato de ter sido entendido que a criminalização de toda e qualquer conduta indesejável representaria a melhor e mais fácil solução para enfrentar os problemas de uma sociedade complexa e interdependente em contínua expansão.

Nos Estados Unidos, Kadish em trabalho a que deu o nome de The crisis of overcriminalization fala do emprego ‘supérfluo ou arbitrário’ da sanção criminal, contendo uma massa de crimes, que em seu quantitativo superam as disposições incriminadoras previstas nos Códigos Penais.

No Canadá – segundo informa Leclerq –, a comissão encarregada da reforma penal, fez, em 1974 um levantamento dos crimes previstos na legislação canadense, tendo chegado ao número assustador de 41.582 tipos de infrações criminais.


Enfim, o falacioso discurso do movimento de Lei e Ordem, que prega a máxima intervenção do Direito Penal, somente nos faz fugir do alvo principal, que são, na verdade, as infrações penais de grande potencial ofensivo, que atingem os bens mais importantes e necessários ao convívio social, pois que nos fazem perder tempo, talvez propositadamente, com pequenos desvios, condutas de pouca ou nenhuma relevância, servindo, tão-somente, para afirmar o caráter simbólico de um Direito Penal que procura ocupar o papel de educador da sociedade, a fim de encobrir o grave e desastroso defeito do Estado, que não consegue cumprir suas funções sociais, permitindo que, cada dia mais, ocorra um abismo econômico entre as classes sociais, aumentando, assim, o nível de descontentamento e revolta na população mais carente, agravando, conseqüentemente, o número de infrações penais aparentes, que, a seu turno, causam desconforto à comunidade que, por sua vez, começa a clamar por mais justiça.

O círculo vicioso não tem fim.

Rogério Greco
Procurador de Justiça do Estado de Minas Gerais; Mestre em Ciências Penais pela UFMG; Professor da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro e Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal; Autor de várias obras de Direito Penal.

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eNT . Revista Eletrônica Nádia Timm . 2006