Rebeldia é a Seiva

Nádia Timm*

 

Redescoberto por David Byme, com aplausos da crítica internacional que considerou The Best of Tom Zé um dos dez melhores discos da década dos anos 90, descoberto e aplaudido pelas novas gerações, Tom Zé ressurgiu.

Confira trechos da entrevista realizada dia 4 de dezembro de 2000:

NT - Como foi o processo de criação de Jogo de Armar?
TZ - Em 1978, no dia 19 de maio, fiz um show em São Paulo onde levei instrumentos num estágio menor de desenvolvimento do que estão agora. Naturalmente, este tipo de idéia não foi aprovado em nenhuma gravadora.


Os instrumentos foram guardados na casa de amigos e acabaram se perdendo. Grande parte estava no sítio de um músico que tocava comigo. O pai dele reclamava muito. Então, caseiro queimou todas as peças de madeira dos instrumentos num inverno frio aqui de São Paulo.

 

NT - O que o levou a retomar a pesquisa de instrumentos?
TZ - Essa coisa foi esquecida, enterrada. Depois teve o episódio de David Byme ter me descoberto. E finalmente agora a gravadora Trama me autorizou e financiou a construção dos instrumentos.
Pelo menos a parte de instrumentos experimentais foi assim.

 

NT - Você aproveita ruídos produzidos por enceradeiras, aspiradores e liquidificadores. Como isto funciona?
TZ - O refinamento dos erros ensina. Todo trabalho é ajudado pelos erros. E na construção a gente teve esta coisa, principalmente na orquestra de hertz, uma espécie de sampler, que hoje se chama hertzé.
Foi o que mais implicou em dificuldade, até acertar, até chegar a uma maneira de o instrumento funcionar em palco. Nós reconstruímos agora e algumas canções e idéias já estavam prontas em 78.


Em princípio, tinha vontade de só gravar o que já estava pronto. Mas não resistimos à tentação de botar a música nova chamada chamegá, por causa da dança que contém. E também a passagem de som, que foi uma idéia que tive há uns cinco anos.

 

NT - Dá para descrever estes instrumentos?
TZ - Os instrumentos de eletromésticos provocam curiosidade por serem um material tão bizarro. Na verdade, o motor da enceradeira nunca é escutado pelo público. Um teclado aciona os motores e outro abre os microfones de contato colocados em determinados lugares.


De metal só são aproveitadas as enceradeiras antigas, quando ainda eram de metal. A vibração desse metal passa por uma mesa, onde se dá a natureza do som que a gente quer. O público só ouve o acontecimento sonoro quando nós abrimos os microfones. Os motores não são escutados.

 

NT - Esse ritmo novo, o chamegá, é um sincretismo?
TZ - Não é um ritmo híbrido, não, O chamegá é um ritmo novo, uma batida de violão nova. Já em 76 eu tropecei numa batida de violão e nós todos, os músicos amigos, ficávamos curiosos: "Que coisa interessante!", dizíamos. "Eu não acerto entrar, não acerto contar", diziam.


"Que hora é o tempo forte, que hora é o tempo fraco", perguntavam. E todas essas especificidades foram obrigando o músico a dizer: "Puxa, eu queria fazer uma bateria pra isso! Queria compor um contrabaixo pra isso. E a cada hora que uma solução ia sendo encontrada íamos ficando contentes, até que Lauro Léllis, que é meu baterista, me chamou a atenção. Disse: "Tom Zé, você tem um ritmo, você devia compor um disco todo com este novo ritmo, como quem registra esta marca".

NT - O chamegá é a marca do disco?
TZ - Eu não fiz o disco inteiro, neste disco a gente fez algumas canções. E, como ficou muito dançável, muito gostoso, nós compusemos uma pequena coreografia. A sugestão de passos está na capa e o próprio disco tem os passos principais. Laura Andreato e Paula Lisboa arredondaram a dança. No lançamento, mostramos. Ficou muito alegre, muito bom.

 

NT - E esta novidade de CD auxiliar, qual o objetivo?

TZ - Com CD auxiliar qualquer pessoa em sua casa, até um radialista, pode remontar, recompor qualquer das canções. Mas, se eu compusesse canções como Chega de Saudade, não poderia
contar com esse recurso, não poderia oferecer essa possibilidade ao ouvinte.


Isso porque uma composição nesse gênero tem uma linha melódica contínua, uma harmonia que acompanha toda canção. E como as minhas canções são feitas com pequenos loopings, acho que é o nome mais popular no Brasil, pequeno trecho musical que se repete, principalmente no baixo.


Como minha música é feita com módulos, fica possível oferecer esses loopings em separado para serem remontados. O que eu faço também é uma montagem.


A pessoa põe no computador, através do CD auxiliar, ou usa um gravador multipista, ou na sua própria banda de garagem. Pode remontar a música de uma maneira diferente e, se possível, fazendo outras letras.

 

NT - Você provoca uma espécie de parceria?
TZ - No encarte do disco, mando trechos de letras que não usei. É para incentivar também essa criação de textos, de letras, e no CD auxiliar de vez em quando falta alguma coisa daquelas que eu coloquei na música.


É uma maneira de instigar o parceiro distante a criar uma coisa para substituir, ou tocar essa coisa no seu próprio instrumento. Um radialista, por exemplo, pode fazer uma remontagem da música e ter na sua emissora uma música absolutamente impossível de outra rádio ter.
Aí ele se toma meu parceiro, registra e também recebe direito autoral.

 

NT - Música de vanguarda tem público no Brasil?
TZ - Não faço exatamente música de vanguarda. A partir de 76, me defrontei com essa idéia de fazer música modular, que lembra um pouco uma configuração nas artes plásticas.


Lembra os módulos de Alexander Calder. Aqueles móbiles, aquelas peças giram de acordo com sua circunferência e tamanho de modo que você nunca encontra o objeto de uma mesma maneira.
É uma probabilidade muito remota e a música que faço lembra aquilo. Por isso, você pode
montar diferente um objeto de Calder, em outra posição e distância.

 

NT - Foi difícil assimilar esse trabalho de ponta, de pesquisa?
TZ - Eu tropecei com isso, não foi uma coisa refinada do meu caráter. Uma intenção de compor uma música que fosse adiante da música dos outros, que tivesse a chancela da novidade, do vanguardismo.


No princípio, me criou muita dificuldade. Eu não tinha essas tentativas de composição muito ajustadas para chegarem ao ouvido do consumidor, do fã, do ouvinte sem muitas arestas, de uma maneira mais palatável.

Os próprios instrumentos ainda eram manejados com dificuldade, com tecnologia muito precária, sem dinheiro. Em 78, eu vendi uma casa de praia. Fui um artista que circulou muito e fez muito sucesso de 68 a 73.

Em 73, quando eu fiz aquele disco Todos Olhos, eu caí. Achei que ia agradar, porque era diferente, com novidades, mas ele não tocou em rádio. Eu desapareci, entrei na fase de ostracismo.

NT - A que você atribui essa fase?

TZ - O disco tinha músicas bastante populares, mas não deu certo. E só veio fazer sucesso 17 anos depois, com o The Best of Tom Zé, que inclui quatro músicas dele. Eu digo que nunca fiz uma canção. Fiz tentativas.


A cada disco, com as dificuldades, com a recusa das gravadoras - embora não tenha queixa de nada, acho natural - fui aprumando, fui chegando perto das canções "normais".


Não gosto de chamar de vanguardismo, mas não deixa de seu uma coisa um pouco diferente. É
mais uma dificuldade natural do que uma tentativa de ser a novidade.

 

NT - É um preço por desenvolver um trabalho fora dos parâmetros da indústria cultural?
TZ - Uma coisa dessas em que você tropeça e se apaixona. Que você passa a lutar por ela, acaba sendo fora do produto industrial normal.

 

NT - Você investe num sincretismo musical com fortes referências na música nordestina, erudita e dodecafônica?
TZ - Realmente eu estudei. Sou uma pessoa em que a influência da música da infância está plenamente presente, mas eu estudei numa escola de música pós-moderna, na universidade da Bahia, nos anos de 61 a 67, dirigida por Koell-reutter e Widmer.


Apesar disso, dodecafonismo, serialismo, atonalidade, politonalidade, essas coisas no meu es-pírito funcionam hoje como grades matemáticas. Politonalidade você pode encontrar às vezes na minha música.
Não faço uma música tonal, mas também não é atonal. E é uma música cantável, apesar de não ser tonal.

NT - Qual é a síntese entre as suas propostas, a música popular e a erudita?
TZ - Quero explicar bem isto. O cérebro do homem tem um recurso que independe da vontade da criatura. É quando você aprende qualquer sistema.
O cérebro é capaz de fazer uma coisa que a teoria da informação chama de traduçãointer-semiótica, tradução entre linguagens de sinais diferentes.
Exemplo prático: no meu modo de entender, a Bossa Nova fez a ponte Rio-Niterói.
Vamos tentar explicar. A Bossa Nova fez com altura relativa, quer dizer, notas musicais. Fez com tempos, tempos fortes, tempos fracos. Fez uma estrutura com esses elementos, com esse material que é próprio de música.

 

NT - Sua música com raiz na cultura popular tem ressonância da erudição?
TZ - O cérebro humano faz essa coisa. Usa algo que aprendeu em um sistema de sinais. Sem precisar pensar, o homem, quando está tentando resolver outro problema e já conhece aquela sitemática anterior, processa esses dados para o novo problema. O que aprendi na
escola eu processo dessa maneira.


Uso o sistema em outra direção. Mas eu não faço música dodecafônica, serialismo, politonalidade. Naturalmente, esse estudo sofisticado me ajuda a trabalhar com a música sertaneja que está no meu coração. A revista Rolling Stone classificou o CD The Best of Tom Zé como um dos melhores discos da década.

NT - Como isto refletiu em sua carreira?
TZ - A primeira coisa é o lado humano. Orgulho, alegria, felicidade de ver uma coisa que você fez sozinho, no escuro, deserdado. É claro que tem o apoio da família, mas eu fiquei deserdado, perdi meus pais na hora em que essa música que eu tentava fazer não teve aprovação no Brasil.


Depois de tantos anos, essa música vai para lá e o disco é considerado um dos melhores da década. Todo mundo no Brasil ficou mais curioso ainda, abriu espaço em gravadoras. Ter respeito e consideração é a melhor coisa que você pode conseguir no mundo. Melhor do que ter dinheiro, sem dúvida.

 

NT - Desde quando sua carreira está se desenvolvendo no exterior?

TZ - Desde 93. Fiz uma vida quase toda no exterior, porque aqui não era procurado. Tinha mercado nos Estados Unidos e na Europa, para onde eu fazia excursões. Depois os convites foram aumentando, até que em 98 eu fui fazer o Abril Pró Rock.
Às vezes, diziam que eu era um artista difícil, que fazia uma música sofisticada. Nunca  achei isso.
Mas também não se pode ficar brigando com o que dizem.

NT - Como foi a volta por cima?


* A entrevista continua no próximo livro de entrevistas de Nádia Timm, aguarde...

eNT...

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eNT . Revista Eletrônica Nádia Timm . 2007