Tudo pelos prêmios

Ana Paula Sousa

Nas últimas semanas, o Ministério da Cultura (MinC) entrou na mira de uma conhecida ala de produtores e artistas brasileiros. Nos jornais, a pasta comandada por Gilberto Gil foi chamada de autoritária, centralizadora e incompetente. À primeira vista ideológica, a briga tinha origem, no fundo, numa única e mundana questão: a distribuição de verbas.

Não foi preciso lupa de Sherlock Holmes para adivinhar o sentido oculto nessas palavras. A pista surgiu no próprio editorial do jornal O Globo, na quarta-feira 11: “Há no BNDES R$ 10 milhões para financiar filmes. O edital seria dirigido para, salvo exceções, alijar grandes nomes, punir o sucesso”. Elementar.

O resultado do concurso público, que teve 178 inscritos e 30 pré-selecionados para a defesa oral (chamada de pitching), será divulgado apenas na semana que vem. CartaCapital apurou alguns dos nomes que ficaram de fora dessa etapa final: Luiz Carlos Barreto, seus filhos Bruno e Fábio (três projetos ao todo), Paula Lavigne, Paulo Thiago, Tisuka Yamazaki e Daniel Filho.

Todos eles, direta ou indiretamente, aparecem ligados às recentes críticas ao MinC. A porta para as manifestações foi aberta por Ferreira Gullar. Numa sabatina feita pelo jornal Folha de S.Paulo, em 21 de dezembro, ele afirmou que, apesar de não acompanhar os feitos do ministério, ouvia dizer por aí que “os projetos não andam” e acusou Gil de “centralização”.

Quem respondeu foi Sérgio Sá Leitão, secretário de Políticas Culturais do MinC. Após ponderar que as críticas partiam de alguém declaradamente desinformado e listar algumas ações do governo, escreveu a frase que jogou munição nas mãos dos adversários: “A centralização não era marca registrada dos finados regimes stalinistas dos quais Gullar foi e segue sendo um defensor?”

O poeta, ex-PCB, rebateu comentando que a resposta do MinC parecia um comunicado do SNI. Angariou, a partir daí, os aliados já mencionados.

Barreto bradou com a voz forte de sempre e, ao lado do amigo e produtor Zelito Viana, puxou um abaixo-assinado pedindo a cabeça de Sá Leitão. Paula Lavigne passou procuração para Caetano Veloso, que escreveu: “Se um ministério demonstra não aceitar críticas (...) estamos a um passo do totalitarismo”. Gláucia Camargos, mulher de Paulo Thiago, disse ao jornal O Globo que há “uma tentativa de centralização de recursos públicos”. Roberto Farias, cineasta e funcionário da Globo, voltou a evocar a expressão “dirigismo cultural”.

Totalitarismo, autoritarismo e tendência à centralização, não é demais lembrar, foram também as palavras de ordem que lideraram as manifestações contra a criação da Agência Nacional do Audiovisual (Ancinav), sepultada, antes mesmo de nascer, há exatamente um ano.

À época – extravagâncias do projeto à parte – temia-se que televisão e majors do cinema, como Columbia, Fox e Warner, tivessem de mexer no bolso para contribuir com a produção independente. Agora, o que está por trás da grita, como bem indica o resultado do BNDES, é o incômodo causado pela distribuição do dinheiro via editais, ou seja, por meio de concursos públicos que incluem regras claras e comissões dificilmente contestáveis.

“A política de editais, que por sua essência são mais democráticos, universais e abrangentes, está sendo adotada mais intensivamente de um ano e meio para cá”, indicou o ministro Gil, em entrevista exclusiva a CartaCapital (leia na edição impressa).

O ministro Gil contou ainda que Barreto, em cartas e e-mails, disse ter enviado 12 projetos ao governo, sem sucesso. “Mas pelo menos uns seis ou sete projetos não entraram nem em julgamento de mérito porque tinham irregularidades anteriores, inadimplências e coisas desse tipo”, explicou o ministro.

Informado da declaração, o produtor de O Quatrilho (1995) e Dona Flor e Seus Dois Maridos (1976), entre dezenas de outros filmes, rebateu a acusação. “Se o ministro Gil fez esta declaração ele está mal informado, pois não tenho nenhum tipo de inadimplência e nem irregularidades”, escreveu, enfático, num e-mail.

“No último edital da Petrobras, me informaram extra-oficialmente que dois dos projetos de minha empresa estavam com documentação incompleta. Fui verificar e constatei que não era problema de documentação, mas de digitação dos formulários. O mínimo que posso exigir agora é que provem e explicitem essas irregularidades”, prossegue Barreto. Mas, ao ser perguntado, por telefone, a respeito da dívida que tinha com o Banco do Brasil (assunto tratado na reportagem O Proer das Telas, ed. 298 de CartaCapital), titubeou: “Olha, esse negócio está em pleno processo de negociação. Mas a dívida vai ser paga”.

Representante maior da oligarquia que, por anos, dominou o cinema brasileiro, Barreto vem de uma sucessão de fracassos, como A Paixão de Jacobina (2002), que vendeu 146 mil ingressos, e Bella Dona (1998), com 68 mil espectadores. Nos anos recentes, sua produtora tem feito cada vez menos filmes e o último lançamento, O Casamento de Romeu e Julieta, fez 969 mil espectadores em 2005, um número razoável, mas muito aquém do esperado, dado o tamanho do lançamento – feito com o apoio da Petrobras.

“As principais queixas contra o ministério vêm de produtores que têm medo de que a mudança de regras faça mal ao seu negócio”, argumenta Orlando Senna, secretário do Audiovisual. “São pessoas que têm a sensação de que os ajustes no mercado podem prejudicá-las.”

Na opinião da crítica Ivana Bentes, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o movimento contra os editais públicos é encabeçado pelas figuras que foram sempre beneficiadas pela política de balcão, pela política do ‘sabe com quem está falando?’

“Houve um deslocamento de verbas e esses produtores parecem temer que se crie uma base nova, que se amplie o número de atores da cultura”, aposta Ivana. “É uma postura provinciana, de um Brasil que tinha cinco nomes que mandavam. E a mídia costuma seguir a lógica de celebridade e ouvir apenas os nomes famosos”, avalia Ivana.

De fato, para além dos antigos produtores que têm aparecido na mídia para reclamar do MinC, não é difícil encontrar um discurso diferente. “Não é o caso de falar de autoritarismo. A discussão é outra”, pondera a diretora Lúcia Murat, de Quase Dois Irmãos. “Se alguém se sente prejudicado, que diga. Eu, como qualquer pessoa do cinema independente, não me sinto prejudicada. Alguns setores tinham muita coisa e agora é um pouco mais dividido.”

Silvio Da-Rin, técnico de som que vai estrear no longa-metragem, lembra que não é a primeira vez que surge uma polêmica artificial antes do resultado de editais. “O último edital da Petrobras apresentou um resultado bastante equilibrado, no sentido regional e no sentido da vocação comercial dos projetos. No entanto, nos meses que antecederam a divulgação dos selecionados, surgiu uma falsa polêmica, que opunha uma política de concentração a outra, de ‘pulverização’ de recursos”, diz, referindo-se a críticas feitas por Barreto ao júri da Petrobras.

O que os produtores mais ligados ao cinema comercial não dizem é que são eles os beneficiados pelo artigo 3º da Lei do Audiovisual, que permite a distribuidoras estrangeiras investir parte do imposto devido em produções nacionais. Não caberia ao poder público dividir o resto do bolo entre os produtores independentes?

“Modificaram-se as políticas de atendimento, aplicou-se aqui e ali o princípio da discriminação positiva, de atender setores periféricos que nunca foram atendidos”, disse Gil a CartaCapital.

No caso do cinema, isso parece ser de fato verdade. Além da produção de longas-metragens, a face mais visível do audiovisual, o MinC criou projetos como o DOC-TV, destinado à produção de documentários para as tevês públicas, e o Revelando Brasis, que coloca câmeras de vídeo nas mãos da população de pequenas cidades. Por mais que haja problemas, principalmente de distribuição, o cinema caminha.

Já no caso do teatro, a discussão tem outras nuances. Numa manifestação também recente, feita em novembro por atores famosos de teatro, como Paulo Autran e Marco Nanini (ator no projeto de Paula Lavigne reprovado no BNDES, O Bem Amado), também é qualificada por Gil como uma reclamação dos “consagrados”.

No entanto, os não consagrados também têm queixas. “O ministério de fato se dispôs a falar com os não consagrados, mas, no fim, fomos vendo que os editais não saíam”, relata Ney Piacentini, presidente da Cooperativa Paulista de Teatro, ator do Cia. do Latão e representante de São Paulo na Câmara Setorial organizada pelo MinC. “Nem acho justo dizer que esse é o ministério do Audiovisual, mas que no curto cobertor da cultura o teatro não tem cabido, isso não se pode negar”, diz.

Até agora, o setor foi beneficiado por um único edital com dinheiro do orçamento. Foram R$ 3,9 milhões divididos por 112 produções, em 2004. Para este ano, estão previstos R$ 10 milhões da Petrobras.

Por outro lado, é verdade também que o teatrão segue captando dinheiro no mercado, junto às empresas que podem beneficiar-se dos incentivos fiscais por meio da Lei Rouanet. Só para se ter uma idéia: O Fantasma da Ópera captou R$ 4,8 milhões e As Mulheres da Minha Vida, dirigida por Daniel Filho e protagonizada por Antonio Fagundes, R$ 800 mil.

Augusto Boal, do Teatro do Oprimido, também não foi diretamente beneficiado pelo MinC. Mas uma faceta de seu trabalho, sim. “Firmamos um contrato com o ministério para as atividades do teatro ligadas à população carente”, conta, em referência ao Ponto de Cultura da Favela da Maré, um dos 500 espalhados pelo País. “Com o dinheiro, compramos três arquibancadas e alguns refletores para o teatro e reformamos também o chão.”

Nas atividades mais ligadas à ação social, o MinC tem se virado como nunca. E a distribuição de verbas para regiões antes ignoradas também é uma realidade. No entanto, permanecem na gaveta várias das mudanças prometidas, que seriam capazes de mudar as engrenagens da cultura. “Onde está o decreto que muda a Lei Rouanet?”, pergunta, por exemplo, o produtor Paulo Pélico, da Associação de Produtores Teatrais de São Paulo (Apetesp). A alteração, de indiscutível importância, é anunciada há dois anos, mas continua parada na Casa Civil.

Como se vê, o debate sobre a gestão Gilberto Gil daria muito pano para manga. Mas, para levá-lo adiante, seria importante discutir idéias e ações – e não trocados. “Se fosse um debate de idéias, seria bom para todo mundo. Mas fica uma luta de palavrões, de palavras que viraram palavrões”, observa Boal. “É uma pena ver pessoas inteligentes se agredindo de maneira tão tosca. Também seria importante que quem se diz contra a política cultural explicasse exatamente por que é contra.” Bingo.

 

Artigo de Ana Paula Sousa, originalmente publicado na Revista Carta Capital nº 376, do dia 18 de janeiro de 2005

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