500 Almas
Nômades, estes indígenas parecem fadados ao desaparecimento, já que só os anciões ainda conhecem o idioma. Os descendentes mais novos são alfabetizados, quando muito, em português, o que condena a cultura guató à extinção. É sobre esta encruzilhada que “500 almas” se detém. Narra, sem começo, meio e fim tradicionais, os estertores de um povo. A trágica história dos índios matogrossenses ganha a tela de maneira semelhante a um redemoinho que invade as águas. Este é o elemento destes nativos, exímios artesãos de canoas e moradores da Ilha Insua, perto da fronteira com a Bolívia. Em seu primeiro longa, Joel Pizzini investiga a fundo o passado dos guatós. Na década de 1960, a Funai os julgava extintos. No entanto, em meados dos anos 70, missionários descobriram vários descendentes em pontos distintos do Pantanal. E, após batalhas jurídicas pela posse da terra, a tribo se reuniu novamente em seu antigo território, a Ilha Insua. Na área, foram encontrados pedaços de cerâmica que datam a presença desses nativos antes da chegada do colonizador europeu. Medição feita nos Estados Unidos atesta ser a tribo matogrossense uma civilização milenar. O retorno à ilha constituiu uma importante conquista do povo guató. Suas terras foram demarcadas pelo governo brasileiro, embora intensamente cobiçadas por fazendeiros. A lingüista Adair Palácio, uma das participantes do filme, que traça paralelos belíssimos no idioma nativo, e o poeta Manoel de Barros, cujos sonoros versos já tinham motivado “Caramujo-flor”, primeiro e premiado curta de Pizzini, de 1988. Ainda há seqüências ficcionais protagonizadas pelo ator Paulo José. O intérprete do mítico “Macunaíma” também narra trechos em off. E protagoniza trecho da peça de Jean-Claude Carrière, “Controvérsia em Valladolid”, sobre o encontro entre o emissário papal e um missionário (Matheus Nachtergaele). Através de depoimentos de parentes e amigos, é descrita a bárbara morte do líder indígena, ocorrida em 1982. Os acusados do crime – três caçadores de jacaré - nunca foram julgados. Já os fazendeiros permitiam que o gado comesse as pequenas plantações de subsistência dos nativos. Isto com a complacência do Exército brasileiro. O fascínio pela água aproxima civilizações tão distintas quanto a alemã e a guató. Pizzini sobrepõe cenas de “Os Nibelungos” (1924), do alemão Fritz Lang, à da floresta do Pantanal, sugerindo uma inusitada associação.
Os Guatós lutam para manter sua língua e pátria. Breve Sinopse Um filme "etnopoético" que desvenda o universo mítico e existencial da cultura guató, uma etnia milenar que vive hoje dispersa pela região do Pantanal.
Entrevistas: JOEL PIZZINI - DIRETOR Nascido no Rio e criado no Mato Grosso do Sul, JOEL PIZZINI, divide-se hoje entre São Paulo e Rio de Janeiro. Pizzini é um dos mais premiados documentaristas brasileiros. A poesia e a livre associação de imagens -- sugestiva ao espectador -- são marcas de seus filmes. Tem no currículo curtas como “Caramujo-flor”, de 1988 (melhor diretor no Festival de Brasília e melhor curta em Huelva, na Espanha), “Enigma de um dia”, de 1996 (melhor curta em Gramado e seleção oficial em Veneza), “Glauces – Estudo de um rosto”, de 2001 (melhor filme e melhor montagem, em Brasília) e “Abry”, de 2003, sobre a trajetória de dona Lúcia Rocha, mãe de Glauber (Melhor Curta no “É Tudo Verdade”). O documentário “500 almas” é seu primeiro longa-metragem. Como você descobriu os Guatós?
Foi aquela imagem mítica da “ressurreição” de uma nação indígena que me fez querer conhecer a Ilha Ínsua, onde hoje eles estão. Em 1987, fui com uma representante do IPHAN até a ilha e fiquei muito preocupado com a uma aparente imobilidade deles. Voltei para São Paulo e comecei a escrever um roteiro sobre os Guatós. A Fundação Rockfeller deu suporte a uma ampla pesquisa, que incluiu visita ao Museu de Antropologia de Berlim, que concentra um enorme acervo de fotos, desenhos e artefatos dos Guatós, recolhidos em três expedições ao Pantanal no começo do século passado. Quanto tempo o filme levou para ficar pronto?
E demoramos mais dois anos para conseguir aquelas imagens aéreas, que dão uma idéia da vastidão da região e produzem aquele efeito geométrico. Nós usamos uma câmera que vai acoplada embaixo do helicóptero. Mas para usar este equipamento, tinha que ser um modelo especial. Daí a demora. Depois, eu e a montadora Idê Lacreta levamos seis meses para editar o filme. Pensamos em fazer um trançado, montar um mosaico com os vários feixes narrativos. Por isso, “500 almas” não é um documentário tradicional, com começo, meio e fim.
O filme tem depoimentos de vários indígenas. Eles estão absolutamente à vontade, nem parecem estar sendo filmados. Como você e a equipe conseguiram isso?
Quando sentiram que o filme era favorável a eles, eles se “apossaram” do documentário. Teve um senhor, de 102 anos, que nos chamou para dar seu depoimento. Procuramos não interferir na rotina deles. O Mário Carneiro (diretor de fotografia) usou rebatedores para usar o máximo de luz natural possível. Não me sentiria à vontade para fazer um filme “sobre índios”, não sou antropólogo. Embora tenha desenvolvido uma pesquisa rica e profunda, costumo definir o documentário como “etnopoético”. O filme é antes poesia do que um tratado antropológico.
Por isso, “500 almas” valeu-se tanto da luz natural e da água, outros elementos que dão vida ao Pantanal. Dib é sutil, capta imediatamente o que a gente quer e oferece sempre mais. Sua câmera na mão é precisa.
“500 almas” narra a morte anunciada de uma língua, e consequentemente, a de um povo. Qual foi sua intenção ao contar esta história?
Penso que "500 Almas" propõe uma reflexão e aponta contradições e paradoxos em torno dos discursos sobre a questão indígena, sempre admitindo uma perplexidade sobre o destino que reserva a esta etnia..
Pode ser até que minha postura seja utópica, romântica mas confesso que o que moveu a fazer esse filme, antes de tudo, foi um sentimento visionário.
Também trabalhei em outros projetos. Escrevi e dirigi dois documentários para a série “Retratos brasileiros”, do Canal Brasil, um sobre a atriz Helena Ignez, outro sobre o poeta Manoel de Barros. E fiz ainda “Dormente”, curta sobre a população que vaga nas estações ferroviárias de São Paulo. Qual o seu próximo projeto?
Humberto Mauro devolveu-lhe o roteiro dizendo que só o autor poderia fazer aquele filme. E Mário Peixoto era um garoto ainda quando dirigiu “Limite. Tinha pouco mais de 20 anos.
MÁRIO CARNEIRO – DIRETOR DE FOTOGRAFIA Pintor e gravurista, aos 77 anos, MÁRIO CARNEIRO é o decano dos diretores brasileiros de fotografia. Tem dezenas de filmes em seu currículo, entre eles “O padre e a moça”, de Joaquim Pedro de Andrade, e “A casa assassinada”, de Paulo César Saraceni. Seu trabalho mais recente foi em 2005, o curta “Dormente”, de Joel Pizzini. Em 1994, a fotografia de “500 almas” foi premiada com o Candango no Festival de Brasília.
Você já havia trabalhado com Joel Pizzini anteriormente?
Pizzini me chamou porque sabia que eu tinha sido aluno do Iberê e que minha presença o tornaria mais acessível (risos). Este encontro com o Iberê rendeu ainda “O pintor”, um documentário. Depois fizemos juntos alguns programas de uma série sobre artistas brasileiros para o Canal Brasil. E fotografei o mais recente curta de Pizzini, “Dormente”. Visualmente, “500 almas” é um mosaico com textura de pintura. Como obteve este resultado?
E foi muito complexo filmar no Pantanal?
Você fotografou dezenas de filmes de ficção. Qual a principal diferença entre os dois gêneros (documentário e ficção)?
E como foi trabalhar com o Dib Lutfi fazendo a câmera? Vocês filmaram muitas horas? DIB LUTFI – CÂMERA Nascido em 1936, DIB LUTFI é um dos ícones da fotografia do cinema brasileiro. Foi dele a mão que guiou a estonteante câmera em “Terra em transe”, de Glauber Rocha. Trabalhou como diretor de fotografia com Arnaldo Jabor, Nelson Pereira dos Santos, Cacá Diegues, Ruy Guerra e Domingos de Oliveira, entre outros. Repetiu a parceria de “500 almas” com Joel Pizzini e Mário Carneiro em “Dormente”. Como foi sua experiência em “500 almas”?
E embora fosse no meio do Pantanal, não foi complicado fazer o filme não. A única limitação era o horário. Só podíamos filmar até às 15h30m e 16h. Depois disso, a copa das árvores encobria o sol. E nós precisávamos ter a mesma luminosidade o filme todo.
Você já trabalhou com alguns dos mais consagrados diretores brasileiros. Como foi estar sobre o comando de Joel Pizzini?
PAULO JOSÉ – PARTICIPAÇÃO ESPECIAL O cinema de Joel Pizzini oferece uma livre associação de imagens que lembra os filmes do cinema novo, não?
É mais uma estratégia política. São vários cinemas que estavam englobados sob o nome comum de cinema novo. Diziam que o cinema novo seria fazer com que ele voltasse para trás, mas o cinema do Joel vai atrás buscar o passado pra nos dar uma visão de futuro. Por isso, o cinema do Joel é um cinema mais novo. Você interpretou Macunaíma, a síntese da brasilidade, no filme de Joaquim Pedro de Andrade. Em "500 almas", você dá voz a atitudes imorais de autoridades nacionais. Vê semelhanças no ocaso dos guatós com os rumos do Brasil?
E se nós não tivermos o apoio, a lucidez e a clareza que nos dá um documentário como esse do Joel, nós estamos indo para essa morte lenta até a perda total de identidade. Por isso, é importante que esses documentários como o do Joel não deixem de ser feitos, porque tem pessoas como ele que estão sempre “cavucando” as nossas raízes, descobrindo o que está por baixo dos tapetes. Quando você e o Matheus Nachtergaele trabalharam juntos na montagem de "Controvérsia em Valladoli"? Em que teatro? Ou encenaram aqueles takes só para o filme?
Mas depois houve a morte do Ivan de Albuquerque que fazia o padre que era o diretor do convento de Valladoli, o que, para nós, significou o fim da peça. Mas foi bom que o Joel tivesse visto antes e tivesse documentado a peça.
RIOFILME MIXER Alguns comentários:
"Comovente e desconcertante, “500 Almas” é um apaixonante documentário sobre a nação Guató. O filme mais do que um discurso cívico, se constitui numa belíssima elegia. "500 Almas" é o primeiro filme de longa-metragem de Joel Pizzini, documentarista que a cada novo filme vem ampliando uma pesquisa bastante pessoal com a linguagem do cinema, numa vertente que remete à poesia em seu sentido mais amplo. "500 Almas" é um filme que não acaba. Não só porque sua estrutura circular (ou, antes, caleidoscópica) despreza o "princípio-meio-e-fim" das narrativas cinematográficas, mas porque, ao transpor as fronteiras do documentário, multiplica as possibilidades de leitura de cada uma de suas imagens. “(...) Pizzini trabalhou como se fosse um pintor que constrói uma harmoniosa sinfonia visual de resgate de uma cultura indígena que havia sido decretada extinta. Os índios Guatós aparecem à nossa visão num grande painel de mitos, costumes, linguagens e tradições pelo olhar sensível do cineasta que também se admira na contemplação da beleza natural e humana que o processo de reconstituição de sua identidade nos revela. O filme de Pizzini traz à tona a intimidade de um relato que penetra a alma profunda de um povo e não apenas a sua cultura perdida.” “(...) Em belas imagens, planos cuidadosamente construídos, "500 Almas" retrata o drama dos descendentes (Guatós), da língua nativa que desaparece (e todos esquecem), do líder que foi morto... Tudo que poderia ser banal não fosse trágico. O filme também é original ao colocar atores dizendo textos oficiais (onde se questiona, por exemplo, se os índios tinham alma). PRÊMIOS E PARTICIPAÇÕES • (Incentivo à Pesquisa) Fundação McArthur e Rockfeller (EUA) - sobre a cultura dos índios Guatós. Ficha Técnica: Com índios guatós e descendentes Participações especiais: Narradores/entrevistados: Direção e Roteiro: Joel Pizzini Direção de Fotografia: Mário Carneiro Câmera: Dib Lufti Produção Executiva: Fernando Dias Edição Som: Ricardo Reis Música: Lívio Tragtenberg Montagem: Idê Lacreta Pesquisa: Joel Pizzini Co-argumento: Jane de Almeida Formato: 35mm Duração: 109 minutos Patrocínio: BNDES, Roche Produção: Mixer Co-produção: TeleImage Distribuição: Riofilme
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eNT . Revista Eletrônica Nádia Timm . 2007 |