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Aborto: legalidade, moralidades, dignidade

Dirce Guilhem

Bruno Spada / UNB Agência Dirce Guilhem é professora do Departamento de Enfermagem da Universidade de Brasília (UnB). Tem pós-doutorado em Bioética e Pesquisa com Seres Humanos pela Faculdad Latinoamericana de Ciencias Sociales (Argentina). É autora, em parceria com Debora Diniz, do livro O que é bioética (Coleção Primeiros Passos).

Dirce GuilhemA legislação brasileira relativa ao aborto pode ser considerada bastante restritiva se comparada com a de outros países. O procedimento é permitido em apenas duas situações: risco de vida para a mãe e gravidez resultante de estupro. Uma terceira possibilidade diz respeito ao aborto terapêutico para casos de anomalias fetais incompatíveis com a vida. Porém, a antecipação terapêutica do parto só poderá ser realizada após a expedição de um alvará judicial autorizando a mulher a interromper a gravidez. Cerca de dois mil desses alvarás já foram expedidos no Brasil.

Para qualquer outra circunstância o aborto é considerado crime. No entanto, existem indicativos de que essa é uma prática amplamente realizada no país, muito embora as mulheres atendidas na rede pública de saúde, dificilmente sejam denunciadas pelos profissionais que as assistem. Os altos índices de mortalidade materna vinculada a abortos voluntários, realizados muitas vezes em situações precárias e os gastos significativos que o Sistema Único de Saúde tem assumido para assistir mulheres com sérios agravos à saúde decorrentes de sua realização, apontam que o aborto é um grave problema de saúde pública para o país.

Apesar disso, a sociedade brasileira avança a passos lentos nessa discussão. Em recente pesquisa divulgada pelo Ibope, objetivando mapear a concepção das pessoas sobre o aborto, 58% dos 2000 entrevistados responderam que não tem acompanhado o recente debate relativo ao tema. As principais circunstâncias mencionadas para a sua realização foram: malformações fetais sem chance de vida (62%); risco à saúde da mulher (53%); falta de condições financeiras para criar a criança (37%); e falta de condições psicológicas ou físicas para seguir com a gravidez (31%). No entanto, 53% dos respondentes consideram que a lei do aborto deveria continuar como está e 34% afirmaram que o aborto deveria ser proibido em qualquer situação.

Existe, portanto, nesse contexto, um descompasso entre o que as pessoas verbalizam sobre o assunto e as posturas adotadas pelas mesmas. Isso acontece justamente porque grande parte dos argumentos utilizados para defender a não realização do aborto está impregnada por concepções religiosas dogmáticas e estritas. Uma postura que se reflete, inclusive, nas possibilidades previstas em lei. E embora o Estado tenha regulamentado a atenção às mulheres nesses casos – por meio de normas técnicas elaboradas pelo Ministério da Saúde e da criação de Serviços de Aborto Legal em serviços públicos de saúde – a situação está longe de ser solucionada.

A estrutura desses serviços requer a incorporação de profissionais que possam ultrapassar limites e concepções pessoais para propiciar atenção qualificada, o mais isenta possível de preconceitos. Nem sempre tem sido fácil compor a equipe de trabalho. No entanto, existe um grupo de enfermeiros, médicos, assistentes sociais, psicólogos, entre outros, que conseguiram ampliar seus horizontes. Ao se colocarem no lugar do “outro”, buscam respeitar a decisão tomada pelas mulheres, pois em qualquer do três casos mencionados, a disposição de optar pela interrupção da gravidez envolve questões relativas ao bem-estar físico, psíquico, afetivo e social dessas mulheres. Ao acatar a sua decisão contribuem para resgatar a autonomia, dignidade e integridade dessas pessoas.

Vale salientar, o importante papel que os enfermeiros desempenham nesse cenário. Pelas características da profissão e por ser um profissional que acompanha e está envolvido em todo o processo de atenção à saúde, torna-se capaz de prover o acolhimento e cuidado que as mulheres necessitam. Desde o primeiro contato, o cuidado dispensado deverá contribuir para libertar essas pessoas da dor, sofrimento e culpa a que estão submetidas. Frente a essa responsabilidade concreta, os enfermeiros têm aceitado o desafio de enfocar essa questão sob a ótica de quem gesta e se depara com o conflito. É uma tentativa de contribuir para minimizar as marcas que se imprimem na vida dessas mulheres.

É uma forma de enfrentar o problema ético e humano que se coloca. Assim, como as mulheres devem ter a liberdade para decidir sobre a questão de interromper ou não a gestação, o Estado laico deve colocar à sua disposição recursos que lhes permitam viabilizar suas escolhas, minimizando o dilaceramento resultante do enfrentamento com essa realidade dolorosa e cruel. O léxico ético deve comportar princípios como responsabilidade pública, respeito, dignidade, autonomia, como forma de proporcionar o apoio que a situação conflituosa suscita, impedindo que as pessoas sejam terminantemente esmagadas pelo conflito.

 

 
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