Soldados de Salamina 

a batalha da criação

Quando li que Mario Vargas Lhosa considera Soldados de Salamina , de Javier Cercas, um belo exemplo de quanto a literatura engajada está vivíssima, desanimei. Mergulhei em suas páginas, com um pé atrás, pronta para fechá-lo assim que desse o primeiro sinal de que iria descambar no politicamente correto, no arremedo de literatura.

Mas, que nada. O que se destaca no romance não são bastidores bélicos e políticos, muito menos a obra é palco de violências. Javier Cercas compôs um universo deslumbrante ao criar este enredo com estrutura capaz de levar o leitor a percorrer várias dimensões de épocas, anseios e sentimentos.

A essência do livro é a vida humana, este mistério carregado de paradoxos, junto a outro mistério, a inspiração, o entusiasmo criador.

A personagem homônima do escritor protagoniza a dramática condição do artista durante a concepção de uma obra, na qual luta entre a imaginação e o real, verdades e mentiras. Mais do que um exemplo de um épico, Soldados de Salamina é meta literatura. Há tensão, beleza e enigmas que costuram cotidiano e arte, bloqueio e criatividade, tempo e história, absurdo e verossímil.

Há uma magnífica articulação entre o íntimo, individual, pessoal e os valores sociais que caracterizam cada período. Javier Cercas, o personagem, sofre o drama da criação literária. Nesta percepção, o autor e seu xará, em pleno jogo de identidades, no limiar subjetivo, transpõem fronteiras para além dos ismos que demarcam territórios ideológicos.

Fascismo, comunismo, poesia, arte, amor, morte são fragmentos do sistema, do grande drama existencial. Fagulhas que permeiam todas as épocas vêm à tona, com seus testemunhos de ciclos que se repetem em busca de sentido para a vida e para a morte.

A história da guerra civil espanhola não é apenas pano de fundo, ou mote, para revelar a batalha, a inquietação, a excitação e ansiedade nas entranhas do processo de criação. A história da Espanha é a fonte que se abre para o amplo contexto da história dos povos, misto de fantasias e enredo real, composto de mitologia e anonimato.

O personagem central é escritor e jornalista. Ele luta para sair de uma crise de autonegação como artista e investiga a vida e obra do escritor fascista Sanches - Mazas, fundador e ideólogo da Falange Espanhola ( futuro ministro do primeiro governo de Francisco Franco) que conseguiu escapar da morte de maneira insólita.

O objetivo do personagem é escrever um romance real (como se isto fosse possível neste jogo de espelhos). Entre vencedores e vencidos são evocados ideais, idéias, fracassos, heroísmos e derrotas. As incoerências do guerreiro, a luta do artista estão presentes também em Sanches -Mazas.

Anos 30, século 20. A guerra civil está no fim e tropas fascistas avançam sobre a Catalunha. Porém, os republicanos, antes de baterem em retirada em direção a fronteira francesa, decidem fuzilar um grupo de presos fanquistas.

Entre eles, está Rafael Sanches - Mazas que escapa do pelotão de fuzilamento, graças ao gesto inexplicável de um soldado republicano.

Personagens compõem cenas que vibram, com o vigor do tempo atual, cujo movimento ao passado provoca ações e reações emocionais, passionais, no ritmo de uma canção ou de um passo de dança.

A evocação traz ainda a lembrança da marcha de soldados, num pelotão de fuzilamento. Ressoa na memória o pasodoble, e esta coreografía de dança popular espanhola ganha corpo, nos momentos finais do romance. Talvez seja a própria dança da vida, contemporânea ou ancestral, com sua coreografia inusitada transmutada em palavras e imagens poéticas. Fascinante como este livro.

Bom lembrar: Soldados de Salamina já vendeu 140.000 exemplares na Espanha, alcançando a 17a edição. Sua qualidade literária conquistou quatro prêmios: II Premi Llibreter 2001, Premio Ciudad de Barcelona, Premio Salambó e Premio Literario Cálamo.


Quem é Javier Cercas

Javier Cercas nasceu em 1962, em Ibahernando, Espanha. Entre suas obras, destacam-se o livro de contos El Móvil (1987), os romances El Inquilino (1989 e 2000) e El Vientre de la Ballena (1997), as coletâneas de artigos Una Buena Temporada (1998) e Relatos Reales (2000) e um livro de ensaios La Obra Literaria de Gonzalo Suárez (1994). Trabalhou durante dois anos na Universidade de Illinois. Desde 1989, leciona literatura espanhola na Universidade de Gerona. É colaborador habitual na edição catalã do jornal El País.

Título: Soldados de Salamina
Gênero: Literatura Estrangeira
Editora: Globo http://globolivros.globo.com
Autor: Javier Cercas
Tradução: Wagner Carelli
Projeto Gráfico: Inc. design editorial
Formato: 14 x 21 cm
Páginas: 256

R$ 37

 
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