Compulsão no mundo moderno

MARCELO NICARETTA

      

O uso do álcool e de outras substâncias psicoativas, tais como a maconha, a cocaína e o ópio, têm sido de longa data um hábito humano nas mais diferentes culturas, tanto no Ocidente quanto no Oriente. O uso, por sua vez, tem sido motivado por finalidades como a religiosidade, a pesquisa ou apenas por puro prazer.

Entretanto, tão antigo quanto esse hábito são também os problemas advindos dele. Não pelo simples consumo dessas substâncias, mas pelo seu exagero, pela perda de controle sobre qualquer finalidade aparente e racional para tal. Nesse caso, o que se configura já não é um uso qualquer, mas uma relação de dependência com essas substâncias, onde a ação de consumir deixa de ser uma escolha passando a ser uma necessidade vital.

Embora os malefícios da dependência sejam conhecidos desde a antiguidade eles só se tornaram uma preocupação social no final do século 19 com a propagação em massa do uso, sobretudo, do álcool e do ópio, nas grandes cidades européias e americanas.

Nesse período, surgiram as primeiras políticas públicas para controle do uso dessas substâncias e, também, tentativas de tratamentos para os usuários. A partir disso, o homem abandonou o antigo relacionamento com o que havia de natural no uso dessas substâncias criando uma nova forma de adoecimento das massas, uma endemia.

O estabelecimento da compulsão como uma “doença” é a marca inicial de um importante campo de estudos, que têm no álcool seu principal expoente. Isso porque, além de ser em todo o mundo a droga mais consumida seu uso crônico também está diretamente associado a um amplo conjunto de afecções orgânicas e psíquicas, desde estados psicóticos até males como cirrose e certas neuropatias, que são extremamente caras aos cofres públicos.

A gravidade do panorama advindo do uso abusivo do álcool não se refletiu apenas nas políticas públicas. Trouxe também questões importantes para os pesquisadores de diferentes campos, em particular para a psiquiatria, a psicologia e a psicanálise, que passaram a ter no dependente um modelo de adoecimento particularmente desafiador devido à sua resistência as formas de tratamento usualmente eficientes para outros problemas. A complexidade dessa cena trouxe também outras novidades.

Como razão dessa dificuldade, uma alternativa para o tratamento dos compulsivos foi proposta. No ano de 1935, dois ex-alcoolistas, Bill, um corretor da bolsa de valores de Nova York, e Bob, um médico cirurgião, criaram o primeiro grupo de auto-ajuda ou ajuda mútua, que ficou mundialmente conhecido como a irmandade dos Alcoólicos Anônimos. Essa entidade tornou-se um modelo para o surgimento de outros grupos semelhantes dirigidos a vários tipos de compulsões, que se estendem desde aqueles que amam demais até os que comem de menos.

Os grupos têm uma origem diferente das psicoterapias grupais e em geral são coordenados por pessoas sem a devida formação. Seu funcionamento se baseia em dois princípios fundamentais: a identificação, que torna possível ao compulsivo por meio do testemunho dos membros mais antigos acreditar na possibilidade de se tornar abstinente como eles e na manutenção dessa abstinência pelo contato direto com outros compulsivos em recuperação.

Esses grupos também operam uma importante função negligenciada pelas psicoterapias, de estabelecer uma rede social em torno do sujeito em recuperação de modo a evitar ativamente sua recaída. Esse é talvez o principal fator que deu sustentação a esses grupos e permitiu a ampliação considerável das suas atividades ao longo desses 70 anos. Fazer um compulsivo para de beber ou fumar é relativamente fácil.

Difícil mesmo é fazê-lo sustentar sua abstinência com o tempo. Entretanto, participar de um grupo de auto-ajuda é o mesmo que beber um segundo copo de água depois que o primeiro matou a sede. Evitar o pileque pode ser, para o alcoolista, uma boa saída. Mas para a sociedade pode implicar um “mascaramento” daquilo que está na origem das compulsões – o mundo moderno e suas vicissitudes.

Nesse sentido, o uso abusivo do álcool e das demais drogas pode ser visto, para além da dificuldade individual daqueles que se perdem na busca por um gozo infinito, como um espelho da contradição característica do mundo moderno. Assim, o progresso definido como meta global pressupõe, por um lado, que seja possível o controle dos homens sobre os próprios homens, e, por outro, que o caminho para a felicidade está na ideologia do “viver sem limites” (no limits) como regra para o sucesso na vida, seja como empresário, político, atleta ou simplesmente como um bom bebedor.

Assim, torna-se evidente que tratar os compulsivos, seja com uma psicoterapia ou aplacando seus sintomas nos grupos de auto-ajuda, pode não ser suficiente, se aquilo que a sociedade constitui e impõe autoritariamente a todos como valor humano não for questionado.

Não é possível sustentar o espetáculo do progresso impelindo as pessoas a correr ou trabalhar além do seu próprio limite e esperar delas que bebam, fumem ou se droguem com moderação.

Marcelo Nicaretta é psicólogo clínico especialista em Psicoterapia de Base Reichiana. É mestre em Psicologia Clínica pela Universidade de Brasília (UnB), onde desenvolve pesquisa de doutorado cujo título é: A efetividade das Psicoterapias e o mercado dos tratamentos psicoterápicos.

 

 

 

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