O furacão Bush

e o espírito de Nova Orleans

 

MAURÍCIO THUSWOHL

 

Estava eu assistindo o Jornal Nacional da TV Globo, em meio a notícias de pedidos de cassação e relatórios de CPI, quando fui arrebatado pelas imagens da desolação sofrida pela cidade de Nova Orleans, que fica no estado da Louisiana, um dos mais atingidos pelo violento furacão Katrina que castigou o Sul dos Estados Unidos. Impressionaram-me as cenas da jovem chorando suas crianças levadas pelas águas do rio Mississipi que tragou a cidade, do idoso com água na altura do tórax e olhar perdido no horizonte à procura de sabe-se-lá-o-que e da mulher obesa desesperada aguardando um improvável socorro sobre as telhas de uma casa quase submersa.


Todas as vítimas mostradas na reportagem eram negras, assim como a maioria da simpática (e pobre) população da cidade, dizia eu com meus botões do controle remoto, quando uma notícia me fez aflorar de vez a emoção. O músico Fats Domino, disse o apresentador, está entre os milhares de desaparecidos contabilizados após a tempestade.

O grande pianista Domino, um dos pais do que viria a se chamar rock and roll, uma das muitas estrelas de primeira grandeza nascidas em Nova Orleans, cidade que também foi berço de Louis Armstrong, Winton Marsalis e King Oliver, além de muitos outros. Cidade que serviu de abrigo e inspiração para outros grandes músicos, como Charlie Parker e Miles Davis, para ficar apenas nos mais geniais. Todos negros, assim como as vítimas do Katrina mostradas na reportagem.

Estava refletindo sobre isso quando uma segunda reportagem sobre o mesmo tema fez a profunda tristeza que eu sentia se transformar em indignação. Preocupado com a “onda de saques e violência” que toma conta da cidade, o presidente George W. Bush anunciou que “a partir de agora, as forças da ordem terão tolerância zero” com os baderneiros. Quando o Katrina varreu Nova Orleans e várias outras cidades da região, Bush, bem a seu estilo, reagiu com letargia.

A pressa que teve em prometer providências para a classe média alta, que não perdeu suas casas, mas agora está isolada e intranqüila, não existiu para tomar medidas preventivas dignas do nome nos bairros populares ou para socorrer com presteza as vítimas. Cinco dias após a tragédia, parece que somente os saques e o medo da população mais abastada foram capazes de fazer com que o governo federal acordasse para a realidade de que aquilo acontecera nos EUA e que aquelas vítimas eram cidadãs estadunidenses. Não eram iraquianos quaisquer.

Ou será que, para Bush, sua doutrina e seu governo, a população majoritariamente negra e pobre de Nova Orleans está no mesmo patamar dos iraquianos? Provavelmente sim, a julgar pelo anúncio feito pelo Pentágono de que três mil combatentes de elite que estiveram no Iraque foram deslocados para a cidade com ordens de “utilizar os meios necessários” para deter a violência. Aquilo que os assessores de Donald Rumsfeld souberam dizer com habilidade foi escancarado pela indigesta governadora da Louisiana, Kathleen Blanco, republicana como Bush: “Se for necessário, os soldados podem atirar e matar. Os saqueadores fiquem sabendo que estas tropas estão equipadas com metralhadoras M-16 carregadas, sabem como atirar para matar e acredito que farão isso”, disse à CNN.

É de dar medo. Quer dizer que a população de maioria negra e pobre de Nova Orleans e de outras cidades espalhadas pelo Sul dos EUA, além de ser historicamente discriminada, além de sofrer com as leis de um país racista, além de ser vítima do subemprego, ainda por cima vai levar bala por estar promovendo saques em meio a todo esse caos? Não sejamos ingênuos, é claro que existem bandidos em Nova Orleans.

Dizem, por exemplo, que gangues rivais estão de fato se enfrentando a tiros dentro do Centro de Convenções da cidade, onde milhares de pessoas se encontram aglomeradas. No entanto, a maioria das pessoas que estão saqueando o comércio, como mostram as imagens da tevê, estão fazendo isso para encontrar comida numa situação de total devastação e onde o governo só agora está chegando com as primeiras remessas de remédios e mantimentos.

O governo prometeu que, somando o Exército à Guarda Nacional, cinqüenta mil homens estarão esta semana em várias cidades atingidas “a postos para reconstruir a região”. Além da ajuda humanitária e da repressão, esse contingente pode ter que trabalhar no resgate de corpos. Algumas ONGs já estão soltando relatos dizendo que o número de mortos pode passar da casa dos mil.

Mas, para o governo Bush, essa gente é estranha. São os outros. Estão distantes, assim como os iraquianos, mesmo sendo gente nascida nos EUA. Nesse aspecto, o furacão Bush destrói mais que o Katrina. Sua força é ancestral nos EUA e vem dos mesmos ventos que insuflaram as tempestades no deserto do Iraque, o napalm no Vietnã e as bombas atômicas de Hiroshima e Nagazaki.

Pensando assim, já estava dominado pela velha sensação de ira em relação aos EUA quando, de repente, percebi no brilho dos olhos daquela gente mostrada nas reportagens o espírito de Nova Orleans. Foi uma revelação. Pensei “peralá, essa gente é muito mais americana que Bush” e agradeci do fundo do meu coração aos EUA, e a Nova Orleans, por terem dado ao mundo Louis Armstrong, Winton Marsalis e Fats Domino. Por terem nos dado o jazz, que é a maior expressão desse espírito.

O desespero das vítimas do Katrina semelhante aos dos iraquianos e o cenário de inundação parecido com o das cidades asiáticas devastadas pela tsunami me fez refletir mais uma vez que todos os despossuídos desse mundo são iguais, mesmo se tiverem nascido na maior potência capitalista. Confirmei, agora já sentindo um misto de alegria e raiva, que todos os povos são maravilhosos e têm coisas maravilhosas a oferecer. O problema são suas elites econômicas. Essas, raramente prestam.

 


Maurício Thuswohl é editor de Meio Ambiente e repórter da Agência Carta Maior em Brasília


 

 

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