Feridas abertas por amores

(e políticos) contrariados

por Nádia Timm

  

 Abre o laptop e tecla: eu vírgula dois pontos quero vírgula abre aspas desligar o computador vírgula e me concentrar ponto vírgula reticência //http://////wwwwwwwww A tela em branco espera um personagem, ou uma invasão de anônimos. A multidão vem vindo do século 19. Lembranças da Paris de Os Miseráveis.

Ana se acomoda na poltrona, repara nas cortinas e no papel com desenhos delicados que recobre as paredes do quarto de hotel.  Digita no diário eletrônico: “Minha barricada, teu corpo. Meu cantar, tua boca. Abismos do mundo. Victor Hugo descreve a tragédia provocada pela paixão. Fantine prostituída, no fundo do poço, vendeu cabelos e dentes para alimentar a filha. Séculos depois, há tantas mulheres que precisam de maridinhos na coleira, pit--bull desdentado, brocha, gigolô, oferecendo a imagem de proteção. (Por que somos seres tão desesperados por amor, por que nos vendemos por tão pouco?) ”.

Ana se sente miseravelmente plantada no Brasil do século 21. Desvia sua atenção para a televisão. Na telinha, a barricada dos oportunistas numa invasão de terras, em Goiânia. As imagens são patéticas, porém o grotesco jornalismo via-satélite não a comove. Alguns oportunistas bem vestidos, bem alimentados se misturam aos pobres desgrenhados na cena sob o sol e poeira avermelhada, ao ermo do cerrado.

Começa o telejornal e a guerra no deserto, na imagem desregulada do televisor, é azul. Ana ainda lembra de Victor Hugo e pensa: “Outra, ou a mesma humanidade? Ideais, idéias de Napoleão. Waterloo é aqui. Beijo perpétuo na boca de pedra, carícia de novela, crueldade, injustiças”. Desiste de escrever o diário Blog, em cujas páginas virtuais desabafa quase todos dias, escondendo sua identidade, sob pseudônimo de Sabrina.

- Loucura! - geme, exausta da porcaria que a tevê despeja. Não há nenhuma notícia sobre a explosão em Alcântara. A fina flor da ciência brasileira desaparece sob ataque norte-americano, na melhor base de lançamento de foguetes do mundo e não sai uma linha no noticiário. Nem nos portais. Ana cansa de procurar informações na Internet e larga o computador portátil.

 Abandona o quarto de hotel e vai caminhar na praia. A areia está limpa, clara. Cheiro forte vem na brisa.  Água fria, angústia e solidão. Copacabana, depois de 25 anos, está mais linda. A última vez que esteve aqui despachou (tipo despacho de macumba mesmo) seu primeiro e único amor.

 Era 31 de dezembro de 1978, noite de virada de ano, brigaram feio. Ana amanheceu escrevendo a palavra Roberto, dezenas de vezes, na areia molhada. Flores para Iemanjá, na espuma das águas e na areia uma multidão aos beijos, abraços de feliz ano novo.  As ondas se encarregaram de apagar, destruir, arrastar a dor para o fundo do mar.

Escreveu de novo. Novamente, e outra vez, o nome de Roberto na areia que as águas arrastavam para o mar. Quando o sol chegou junto com o ano novo, ela era outra. Não era mais uma alegre mocinha, era um poço desilusão. O coração em mágoa profunda.

Hoje, a sensação voltou. Repete baixinho para si: “uma explosão na praia nordestina é assunto confidencial. Devo esquecer, esconder a verdade, mentir, repetir que foi um acidente.” Ressurge a angústia,  sofre do mesmo modo, dói perceber que pertence a uma grei infame, a um povo lacaio, servil, bárbaro.

Em outros tempos – quando resplendia em juventude - o motivo da chaga foi um rapaz forte, alto, moreno, charmoso como um português galã de novela. A herança árabe no olhar forte numa miscigenação de raças, receita da alquimia da beleza brasileira. O sofrimento foi constatar que o amor de sua vida era capaz de pagar por sexo.

Uma romântica, mesmo sendo uma cientista, tem dificuldade de aceitar a lógica do comportamento dos machos latinos. Ainda ressoam, junto às lembranças de Ana, os sons de tambores e as flores em explosão de brilhos dos fogos de artifício. Conheceu a amargura, um desgosto que gostava de comparar ao do personagem de Tchekhov quando entra pela primeira vez num prostíbulo.

Caipira, do interior de Goiás, o mocinho foi passar as férias no Rio de Janeiro e ficou deslumbrado com as prostitutas das esquinas de Copacabana. A namorada sonhadora pegou o amado no flagra, o surpreendeu no minúsculo apartamento, com a putinha de saia transparente, calcinha de fora, saída da lata do lixo.

Ana rabisca na areia a forma fálica de um foguete e as ondas apagam o desenho. Nunca mais quis saber do cara. Nem de amar. Perdeu o encanto pela vida, destruiu seu coração. Não pensou morrer, mas em tratar como erva daninha qualquer sentimento que  teimasse em nascer. Para ela, amar ganhou novo significado, passou a expressar sedução. Um fogo sob controle, jogo de emoções superficiais.

Mistura as amarguras. Quer apagar da memória a lembrança de que entregou o corpo virgem, como quem se joga num abismo, ao namorado seguinte. Sentiu-se vazia. Agora sofre pela tragédia de um povo ludibriado.Recorda do copo vazio, na mão do presidente meio embriagado, na silenciosa noite do palácio desabitado. “Não, não poderá escrever uma linha a respeito. Nem tocar no assunto nas aulas e conferências”, cisma Ana, e repete aos berros, para o mar, as palavras do chefe do governo: “é uma merda, mas é o tributo da ciência!”.

Cansada, senta-se à beira mar, deixando o vai e vem das ondas molhar seus pés, e se entrega aos devaneios. “O destino gosta de brincar”, repete. Durante a vida, anos e décadas depois, encontrou Roberto muitas vezes. Ele sempre acompanhado por novas esposas, que se sucederam no mais cobiçado papel feminino, em novos cenários. O olhar dele a seguia e a fazia estremecer.

Certa vez sozinhos, sob o luar, numa festa, aconteceu um beijo e o corpo dela vibrou de paixão. No carro, ele beijou seus seios como nos velhos tempos e confessou a saudade.  Mas não fizeram amor. Nunca foram pra cama.  Uma vez Roberto perguntou o porquê do eterno não. Ela respondeu com um sorriso e mudou de assunto. Jamais se entregou, talvez por medo de tanto desejo.

Agora, outra vez não pode entregar a verdade. A agressão norte-americana é segredo de estado. Nunca perdoou Roberto, mas chamou por ele baixinho, muitas vezes. Que desperdício, tanta ilusão! Ele era a fantasia do príncipe, princípio de tudo, com quem queria aprender a fazer amor, ter filhos, netos, jardins, sonhos.

 Ana tratou o sentimento como uma experiência científica. Anotou nos diários quando e como foram estes encontros. Tudo escrito em sua caligrafia arredondada, no caderno de capa roxa. Cenas dignas de uma trilha sonora dramática. Sugere no canto de uma  página: tango de Piazzolla  e/ou uma canção da trilha de Fale com Ela, de Almodóvar.

Resolve voltar ao hotel, apesar do movimento dos atletas da noite, em jogos na areia, sente um arrepio de pavor, é o medo de ser assaltada. Escuta seus próprios passos pesados na areia, coreografia  insólita,  inusitados versos sutis   são trazidos pela saudade.  Ana  pensa: “Amei, desamei. Bem-me-quer, mal-me-quer”. Tenta fazer as contas dos seduzidos. Isto pouco importa, é importante ninguém saber do ataque militar. Analisa os riscos de a notícia vazar. Imagina a bomba nas manchetes dos jornais. Brasil em guerra. Pareceria brincadeira, isto sim”.

De volta ao hotel, digita no Blog: “A realidade foi aquela bofetada na cara, isso sim. Aprendi cedo o preço da expectativa romântica. Não serei  sonhadora como Fantine, mas somos iguais no desencanto. Procuramos o amor em vão. As ondas do mar da cidade maravilhosa fizeram o feitiço, trouxeram o esquecimento. Entre as bugigangas que oferecem na praia, a vida se oferece colorida, inútil, sob o sol incandescente ou beijos de um luar inesquecível”.

 Desliga a máquina e monitora o coração: “ainda sinto angústia daquele desa mor. Tenho saudade, mas não muita. Não sofro mais, não arranho meu corpo nas noites sem prazer, nem sonho com ele. A vida não é o que se quer. As praias guardam segredos de amores e guerras”.

Olha para seus olhos refletidos no espelho da pia, no banheiro, enquanto lava o rosto e suspira.  Paixão recolhida, encravada no peito de uma física nuclear orgulhosa, desde os seus 17 anos, não é fácil de lidar.  É feito punhal que ainda corta. Outros amores? Seria apenas rima inútil para muitas dores. Agressão militar?  Só silêncio a ocultar os  horrores da traição.  Ana paga as luzes e chora.

 

21/03/2005

 

 

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Nádia Timm Web Site . Todos os Direitos Reservados - 2005

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