Artigo

23 de abril de 2005

Quem é o brasiliense?

Mariza Veloso

É lugar comum referir-se a Brasília como caldeirão cultural, ou colcha de retalhos de muitas culturas. Essa visão, contudo, não pressupõe a existência de uma cultura propriamente brasiliense. Mas afinal, o que se pode dizer da cultura brasiliense? Que repercussão tem o discurso sobre a inexistência de uma cultura específica sobre a formação de sua identidade? O que se evidencia é que não se pode mais tratar a cidade como um objeto exterior, estático e inerte, como natureza, que pré-existe aos indivíduos que nela habitam.

As cidades – e Brasília não escapa dessa dinâmica –, são feitas de múltiplas tramas simbólicas, redes sociais variadas, sentidos e significados culturais diversos. Ao contrário de muitas opiniões, a riqueza dos processos de sociabilidade é aqui ainda maior, até porque a diversidade cultural propicia trocas simbólicas extremamente ricas e que contribuem para uma experiência cosmopolita, onde inúmeras tradições mesclam e ampliam suas referências e possibilidades de atualização.

Hoje é possível falar de gerações nascidas e socializadas em Brasília, que contribuíram para escrever a história da cidade. Brasília não possui só a história oficial, a história de sua construção e desenvolvimento do ponto de vista do poder instituído. Possui, também, a história anônima, daqueles que construíram seus monumentos, seus viadutos de concreto e as travessias trôpegas de seus habitantes errantes, que circulam pela cidade modernista em amplas avenidas-retas.

Mas onde está a fisionomia de Brasília? Mais uma vez, ao contrário das opiniões correntes, a cidade respira história, expõe as fraturas da história e ao mesmo tempo revela as utopias. A cidade modernista é cravejada de história. Toda a sua arquitetura é um monumento.

Um dos traços mais contundentes da identidade do brasiliense é gostar dos horizontes infinitos, amplos e silenciosos do Planalto Central. O brasiliense convive com as estações, marcadas pela chuva e pela seca, e vivencia intensamente as múltiplas primaveras que o Cerrado exibe na exuberância de suas florações. O Cerrado marca seu ritmo com múltiplas primaveras. Quando tudo parece acabado, quando a grama seca e dá a impressão de que morreu, então, os ipês amarelos florescem, depois os rosas, e por fim, os brancos, anunciando a chuva. O brasiliense respira!

O habitante de Brasília classifica o tempo em duas categorias: o tempo da seca e o tempo da chuva. Brasília é também um rico laboratório de estudos em muitas áreas disciplinares, como a História, a Sociologia, a Antropologia, a Ciência Política, a Arquitetura etc.

Aqui, a identidade se constrói no permanente jogo com a diferença. Somos todos diferentes – estrangeiros -, porém, somos todos cidadãos de Brasília. Aqui, depositamos nosso voto. Aqui, nasceram nossos filhos e netos e, por vezes, enterramos nossos mortos.

Brasília tem asas! Esta, talvez, a característica mais singular do brasiliense, sentir suas próprias asas. Gerações de brasilienses acabaram por formar uma subcultura jovem, que busca vivenciar sobremodo a natureza. A cidade de pedra gerou o gosto pelas árvores. E é habitada por jovens obstinadamente ecológicos, que costumam buscar os Parques Nacionais da Chapada dos Veadeiros e da Água Mineral , áreas que se tornaram quase que uma extensão da cidade – espaços de sociabilidade intensa do jovem brasiliense – para quem o contato com a natureza é uma valor diacrítico de sua identidade.

Enfim, onde está a identidade do brasiliense? Será que sua fisionomia já se pode mostrar? Creio que sua face já se vislumbra plena, como o horizonte que a circunda, que seu traço distintivo é mesmo ser ‘arlequinal’ – feita de múltiplos pedaços -, como dizia Mário de Andrade sobre a cultura brasileira.

Em verdade, a cultura brasileira aqui ‘mostra a sua cara’, seus pedaços de arcaísmo e pós-modernidade, seus contrastes e contradições, suas possibilidades e seus desafios, que não são apenas os da cidade síntese do Brasil – sua capital federal - mas também os de uma cidade que tece os fios da humanização do espaço do poder, mantendo a utopia política da igualdade entre as classes e os grupos sociais.

Brasília não precisa mais se manter, apenas, como símbolo da Nação – o que traduz um significado já definido. A cidade dos ‘candangos’ é sobretudo uma alegoria da cultura brasileira, com seus significados abertos e variados sistemas simbólicos. Em seu corpo estão inscritas múltiplas referências internacionais, regionais e locais, que em movimento interpenetram-se, transformando permanentemente a identidade coletiva do brasiliense. Identidade que vai se construindo cosmopolita, capaz de absorver o outro, o diferente – um certo jeito de ser brasiliense!

Rodolfo Grilu/UnB Agência

Mariza Veloso é professora de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB). É doutora em Sociologia pela mesma universidade e tem pós-doutorado em Sociologia pela New York University (EUA). É autora, em parceria com a professora Angélica Madeira, também da UnB, do livro Redescobertas do Brasil (EdUnB, 2001).


 

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