Trecho de Memórias de Minhas Putas Tristes |
|
No ano de meus noventa anos quis me dar de presente uma noite de amor louco com uma adolescente virgem. Lembrei de Rosa Cabarcas, a dona de uma casa clandestina que costumava avisar aos seus bons clientes quando tinha alguma novidade disponível. Nunca sucumbi a essa nem a nenhuma de suas muitas tentações obscenas, mas ela não acreditava na pureza de meus princípios. Também a moral é uma questão de tempo, dizia com um sorriso maligno, você vai ver. Era um pouco mais nova que eu, e não sabia dela fazia tantos anos que podia muito bem estar morta. Mas no primeiro toque reconheci a voz no telefone e disparei sem preâmbulos: Insisti que não, que tinha de ser donzela e para aquela noite. Ela perguntou alarmada: Mas o que é que você está querendo provar a si mesmo? Nada, respondi, machucado onde mais doía, sei muito bem o que posso e o que não posso. Ela disse impassível que os sábios sabem de tudo, mas não tudo: Virgens sobrando neste mundo só os do seu signo, dos nascidos em agosto. Por que não encomendou com mais tempo? A inspiração não avisa, respondi. Mas talvez espere, disse ela, sempre mais sabichona que qualquer homem, e me pediu nem que fossem dois dias para revirar o mercado a fundo. Eu repliquei a sério que numa questão dessas, e na minha idade, cada hora é um ano. Então não tem jeito, disse ela sem o menor fiapo de dúvida, mas não importa, assim é mais emocionante, merda, deixa que eu telefono em uma hora.
A única coisa ingrata na casa é que o sol vai mudando de janelas no transcurso do dia, e é preciso fechar todas elas para tratar de dormir a sesta na penumbra ardente. Quando fiquei sozinho, aos meus trinta e dois anos, mudei-me para a que tinha sido a alcova de meus pais, abri uma porta de passagem para a biblioteca e para viver comecei a vender o que estava sobrando, e que terminou sendo quase tudo, exceto os livros e a pianola de rolos.
Hoje me sustento, mal ou bem, com minha aposentadoria daquele ofício extinto; me sustento menos com a de professor de gramática castelhana e latim, quase nada com a crônica dominical que escrevi sem esmorecimento durante mais de meio século, e nada em absoluto com as resenhas de música e teatro que me publicam de favor nas muitas vezes em que intérpretes notáveis passam por aqui. Nunca fiz nada diferente de escrever, mas não tenho vocação nem virtude de narrador, ignoro por completo as leis da composição dramática, e se embarquei nessa missão é porque confio na luz do muito que li pela vida afora. Dito às claras e às secas, sou da raça sem méritos nem brilho, que não teria nada a legar aos seus sobreviventes se não fossem os fatos que me proponho a narrar do jeito que conseguir nesta memória do meu grande amor.
Isso me impressionou tanto que tosei o coco para ir à escola, e até hoje lavo os escassos fiapos que me restam com sabão medicinal de cinza e ervas milagrosas. Quer dizer, me digo agora, que desde muito menino tive mais bem formado o sentido do pudor social que o da morte. Comecei por me perguntar quando tomei consciência de ser velho, e acho que foi pouco antes daquele dia. Aos quarenta e dois anos havia acudido ao médico por causa de uma dor nas costas que me estorvava para respirar. Ele não deu importância: É uma dor natural na sua idade, falou.
Às vezes parecia ser uma garrotada da morte e no dia seguinte se esfumava. Nessa época ouvi dizer que o primeiro sintoma da velhice é quando a gente começa a se parecer com o próprio pai. Devo estar condenado à juventude eterna, pensei então, porque meu perfil eqüino não se parecerá jamais ao caribenho cru que era meu pai, nem ao romano imperial de minha mãe. A verdade é que as primeiras mudanças são tão lentas que mal se notam, e a gente continua se vendo por dentro como sempre foi, mas de fora os outros reparam. Revirava a casa buscando meus óculos até descobrir que os estava usando, ou entrava com eles no chuveiro, ou punha os de leitura sem tirar os de ver de longe. Um dia tomei duas vezes o café da manhã porque me esqueci da primeira, e aprendi a reconhecer o alarme de meus amigos quando não se atreviam a me lembrar que estava contando a mesma história que havia contado na semana anterior. Naquele tempo tinha na memória uma lista de rostos conhecidos e outra com os nomes de cada um, mas no momento de cumprimentar não conseguia que as caras coincidissem com os nomes. Hoje em dia dou risada dos rapazes de oitenta que consultam o médico assustados por causa desses sobressaltos, sem saber que nos noventa são piores, mas já não importam: são os riscos de estar vivo. Em compensação, é um triunfo da vida que a memória dos velhos se perca para as coisas que não são essenciais, mas raras vezes falhe para as que de verdade nos interessam. Cícero ilustrou isso de uma penada: Não há ancião que esqueça onde escondeu seu tesouro. Fazia anos que estava na santa paz com meu corpo, dedicado à releitura diária dos meus clássicos e a meus programas privados de música culta, mas o desejo daquele dia foi tão urgente que me pareceu um recado de Deus. Depois do telefonema não consegui continuar escrevendo. Pendurei a rede num canto da biblioteca onde o sol não bate pela manhã, e me estendi com o peito oprimido pela ansiedade da espera.
A paz mudou a cidade num sentido que não se previu nem se queria. Uma multidão de mulheres livres enriqueceu até o delírio os velhos bares da rua Ancha, que foi depois o calçadão Abello e agora é o passeio Colón, nesta cidade da minha alma tão apreciada pelos próprios e por alheios pela boa índole da sua gente e a pureza de sua luz.
Até os cinqüenta anos eram quinhentas e catorze mulheres com as quais eu havia estado pelo menos uma vez. Interrompi a lista quando o corpo já não dava mais para tantas e podia continuar as contas sem precisar de papel. Tinha minha ética própria. Nunca participei em farras de grupo nem em contubérnios públicos, nem compartilhei segredos nem contei uma só aventura do corpo ou da alma, pois desde jovem me dei conta de que nenhuma é impune.
Um tremor profundo percorreu seu corpo, mas se manteve firme. Humilhado por tê-la humilhado quis pagar a ela o dobro do que custavam as mais caras daquele tempo, mas não aceitou nem um tostão, e tive que aumentar seu salário com o cálculo de uma montada por mês, sempre enquanto lavava roupa e sempre pela retaguarda. Minha vida pública, em compensação, carecia de interesse: órfão de pai e mãe, solteiro sem porvir, jornalista medíocre quatro vezes finalista nos Jogos Florais de Cartagena de Índias e favorito dos caricaturistas por causa da minha feiúra exemplar. Quer dizer: uma vida perdida que havia começado mal desde a tarde em que minha mãe me levou pela mão aos dezenove anos para ver se conseguia publicar no El Diario de La Paz uma reportagem da vida escolar que eu havia escrito na aula de castelhano e retórica. Foi publicada no domingo com um preâmbulo esperançado do diretor. Passados os anos, quando soube que minha mãe tinha pago por aquela publicação e pelas sete seguintes, já era tarde para me envergonhar, pois minha crônica semanal voava com asas próprias, e além do mais eu era o domador de telegramas e crítico de música.
Só depois de velho fiquei sabendo, e por casualidade, do apelido malvado que os alunos me puseram pelas costas: Professor Desolado Outeiro. Dormia no Bairro Chinês duas ou três vezes por semana, e com tão variadas companhias, que em duas ocasiões fui coroado como cliente do ano. Depois do jantar no vizinho café Roma escolhia um bordel qualquer ao acaso e entrava às escondidas pela porta dos fundos. Fazia isso por gosto, mas acabou sendo parte do meu ofício graças à ligeireza de língua dos grandes falastrões da política, que prestavam conta de seus segredos de Estado às amantes de uma noite, sem pensar que eram ouvidos pela opinião pública através dos tabiques de papelão. Foi desse jeito enfim que descobri que meu celibato inconsolável era atribuído a uma pederastia noturna que se saciava com meninos órfãos da rua do Crime. Tive a sorte de esquecer esse ponto, entre outras boas razões porque também conheci o que se dizia bem de mim e apreciei isso em sua medida e em seu valor. Desde que me aposentei tenho pouco a fazer, além de levar meus papéis ao jornal nas tardes de sexta-feira, ou então outras tarefas de pequena monta: concertos no Belas-Artes, exposições de pintura no Centro Artístico, do qual sou sócio fundador, uma ou outra conferência cívica na Sociedade de Melhorias Públicas, ou algum acontecimento grande como a temporada da divina Fábregas no Teatro Apolo. Quando jovem ia aos salões de cinema sem teto, onde tanto podíamos ser surpreendidos por um eclipse lunar como por uma pneumonia dupla por causa de algum aguaceiro desnorteado. Mais, porém, que os filmes me interessavam as pássaras da noite que se deitavam pelo preço da entrada ou davam de graça ou fiado. Pois o cinema não faz meu gênero. O culto obsceno de Shirley Temple foi a gota que transbordou o copo. Quando Damiana ficou velha não se tornou a cozinhar em casa, e minha única refeição regular desde então foi a fritada de batatas no café Roma depois do fechamento do jornal.
Às quatro tentei me apaziguar com as seis suítes para cello solo de Johann Sebastian Bach, na versão definitiva de dom Pablo Casals. Acho que é o que de mais sábio existe em toda a música, mas em vez de me apaziguar como de costume me deixaram num estado da pior prostração. Adormeci com a segunda, que me parece um pouco malemolente, e no sonho misturei o queixume do cello com o de um barco triste que se foi. Quase no mesmo instante o telefone me despertou, e a voz enferrujada de Rosa Cabarcas me devolveu à vida. Você tem uma sorte do demônio, disse ela. Encontrei uma franguinha melhor do que você queria, mas tem um porém: ela tem uns catorze anos. Eu não me importo em trocar fraldas, disse a ela em tom de burla e sem entender seus motivos. Não é por você, disse ela, mas quem vai cumprir por mim os três anos de cadeia? Fazia sua colheita entre as menores de idade que se exibiam em seu armazém, e que ela iniciava e espremia até passarem a vida pior, a de putas diplomadas no bordel histórico da Negra Eufemia. Nunca tinha pago uma única multa, porque seu quintal era a arcádia da autoridade local, do governador até o último bedel da prefeitura, e não era imaginável que à dona daquilo tudo faltassem poderes para delinqüir a seu bel-prazer. Assim, seus escrúpulos de última hora só tinham como justificativa poder levar vantagem com seus favores: quanto mais puníveis, mais caros. A questão se arranjou com um aumento de dois pesos na tarifa dos serviços, e combinamos que às dez da noite eu estaria em sua casa com cinco pesos em dinheiro, e adiantados. Nem um minuto antes, pois a menina tinha que dar de comer aos irmãos menores e pôr na cama sua mãe entrevada pelo reumatismo.
E me cortei com a navalha barbeira, tive que esperar que a água do chuveiro aquecida pelo sol no encanamento refrescasse, e o simples esforço de me secar com a toalha me fez suar de novo. Eu me vesti de acordo com a ventura da noite: o terno de linho branco, a camisa de listas azuis de colarinho acartolinado com goma, a gravata de seda chinesa, as botinas remoçadas com parafina e o relógio de ouro de lei com a corrente abotoada na casa da lapela. No final dobrei para dentro as barras das calças para que ninguém notasse que com a idade eu diminuíra quatro dedos.
Ou seja, os catorze pesos que o jornal me paga por um mês de crônicas dominicais. Escondi o dinheiro num bolso secreto do cinturão e me perfumei com o borrifador de Água de Florida de Lanman & Kemp-Barclay & Co. Então senti a fisgada do pânico e ao primeiro badalar das oito desci tateando as escadas nas trevas, suando de medo, e saí para a noite radiante da minha celebração.
Ao passar na frente de O Arame de Ouro me olhei nas vitrines iluminadas e não me vi como me sentia, porém mais velho e mais mal vestido. Quando acertamos a conta, o motorista me disse a sério: Tome cuidado, senhor, que a casa de Rosa Cabarcas já não é nem sombra do que foi. Não pude fazer outra coisa a não ser agradecer, convencido como todo mundo de que para os choferes do passeio Colón não havia nenhum segredo debaixo do céu. Eu caminhava ansioso de que a terra me engolisse dentro da minha fatiota de ver Deus, mas ninguém prestou atenção em mim, a não ser um mulato esquálido que cochilava sentado no portão de uma casa da vizinhança.
Guardava luto fechado pelo marido morto depois de cinqüenta anos de vida comum, e o aumentou com uma espécie de boina negra pela morte do filho único que a ajudava em suas vilanias. Só lhe restavam vivos os olhos diáfanos e cruéis, e através deles me dei conta de que ela não tinha mudado de índole. Mais de duas vezes, nos tempos em que nós dois estávamos inteiros, também ela havia me livrado de meus sustos. Creio que leu meu pensamento, porque virou-se para mim e me examinou com uma intensidade alarmante. O tempo não passa em você, suspirou com tristeza. Eu quis agradá-la: Em você, passa, mas para melhor. De verdade, disse ela, até ressuscitou um pouco em você a cara de cavalo morto. Vai ver é porque mudei de pasto, respondi com picardia. Ela se animou. Pelo que lembro, você tinha um mastro de caravela. Como é que ele tem se portado? Escapei pela tangente: A única coisa diferente desde que nos vimos pela última vez é que às vezes meu rabo arde. Seu diagnóstico foi imediato: Falta de uso. Só tenho rabo para o que Deus fez, disse eu, mas na verdade ardia fazia tempo, e sempre na lua cheia. Rosa remexeu sua gaveta de alfaiate e destapou uma latinha de uma pomada verde que cheirava a linimento de arnica. Diga à menina que unte seu rabo com o dedinho, assim, disse ela movendo o dedo indicador com uma eloqüência procaz. Repliquei que graças a Deus eu ainda era capaz de me defender sem ungüentos selvagens. Ela caçoou: Ai, professor, perdoe e me deixe continuar viva. E foi cuidar de seus assuntos. Isso é o que os homens acham, replicou ela, mas é pior que picar pedras. Além disso, me confessou que tinha dado à menina uma beberagem de valeriana com brometo, e que ela estava dormindo. Tive medo que a compaixão fosse outra artimanha para aumentar o preço, mas não, disse ela, minha palavra é de ouro. Com regras fixas: cada coisa paga por separado, em dinheiro vivo e por antecipado. E assim foi. Perto do armazém havia um cobertiço de palma para as farras da administração pública, com numerosos tamboretes de couro e redes dependuradas nas vigas. Atrás do quintal, onde começava o bosque de árvores frutíferas, havia uma galeria de seis alcovas de adobe sem emboçar, com janelas de tela para os pernilongos. A única ocupada estava à meia-luz, e Toña la Negra cantava no rádio uma canção de amores malogrados. Rosa Cabarcas tomou fôlego: O bolero é a vida. Eu estava de acordo, mas até hoje não me atrevi a escrever isso. Ela empurrou a porta, entrou um instante e tornou a sair. Continua dormindo, disse. Você faria bem em deixá-la descansar tudo o que o corpo pedir, sua noite é mais longa que a dela. Eu estava atordoado: O que você acha que eu devo fazer? Você é que sabe, disse ela com uma placidez fora de lugar, não é à toa que é sábio. Deu meia-volta e me deixou sozinho com o terror.
Tinha sido submetida a um regime de higiene e embelezamento que não descuidou nem os pêlos incipientes de seu púbis. Haviam cacheado seus cabelos e tinha nas unhas das mãos e dos pés um esmalte natural, mas a pele cor de melaço parecia áspera e maltratada. Os seios recém-nascidos ainda pareciam de menino, mas viam-se urgidos por uma energia secreta a ponto de explodir. O melhor de seu corpo eram os pés grandes de passos sigilosos com dedos longos e sensíveis como se fossem de outras mãos. Estava ensopada num suor fosforescente apesar do ventilador, e o calor se tornava insuportável à medida que a noite avançava. Era impossível imaginar como seria a cara lambuzada de cores, a espessa crosta de pó-de-arroz com dois remendos de carmim nas bochechas, as pestanas postiças, as sobrancelhas e pálpebras que pareciam pintadas com tição, e os lábios aumentados com um verniz de chocolate. Mas nem os trapos nem as tinturas eram suficientes para dissimular seu gênio: o nariz altivo, as sobrancelhas encontradas, os lábios intensos. Pensei: Um meigo touro de briga.
Nas duas primeiras tentativas ela se opôs com as coxas tensas. Cantei em seu ouvido: A cama de Delgadina de anjos está rodeada. Relaxou um pouco. Uma corrente cálida subiu pelas minhas veias, e meu lento animal aposentado despertou de seu longo sono. Tive a sensação indefinida de que havia sentido a maneira como ela se levantava na escuridão e de ter ouvido a descarga do banheiro, mas bem que podia ter sido um sonho. Foi algo novo para mim. Ignorava as manhas da sedução e sempre tinha escolhido ao acaso as noivas de uma noite, mais pelo preço que pelos encantos, e fazíamos amores sem amor, meio vestidos na maior parte das vezes e sempre na escuridão para imaginar-nos melhores. Naquela noite descobri o prazer inverossímil de contemplar, sem as angústias do desejo e os estorvos do pudor, o corpo de uma mulher adormecida. Que Deus a conserve, disse a ela. Todo dinheiro que me sobrava, o dela e o meu, pus no travesseiro, e me despedi para sempre e nunca mais com um beijo em sua testa. A casa, como todo bordel ao amanhecer, era a coisa mais parecida com o paraíso. Saí pelo portão do pomar para não encontrar ninguém. Debaixo do sol abrasador da rua comecei a sentir o peso dos meus noventa anos, e a contar minuto a minuto os minutos das noites que me faltavam para morrer.
|
|
......................................................................................................... |
|
|
Nádia Timm Web Site . Todos os Direitos Reservados - 2005 |
|
|