Crônica

 

Celeste

Nádia Timm

 

Nesses dias sem tempo para curtir a rede do jardim,  Beto sente falta de olhar o céu. Não há paisagem terrestre que se compare ao espetáculo do infinito azul sobre o cerrado, no coração do Brasil.

Quem nasceu perto mar, de algum rio,  montanha, ou na metrópole,  nem imagina a beleza  que se encontra ao olhar para cima, nesta região. No planalto, o céu não concorre com a superfície. Quando o olhar muda de rumo e troca o horizonte pela verticalidade, a sensação é de liberdade, de flutuar no espaço.

Ao voltar da paisagem celeste, depois do vertiginoso estado poético, ressurge o encanto  de perceber o chão,  com seus tons avermelhados, róseos e verdes, junto aos  bichos na terra, sob o som de bichinhos do ar.

Periquitos e papagaios nas árvores das ruas fazem estardalhaço  nas manhãs goianas. Passarinhos, abelhas, borboletas em vôos rasantes ressugem na lembrança. Beto caminha  bem cedo para encontrá-los em revoada e rebuliço.

Não, não está em crise de bucolismo, nada disso. Está mais para uma simples atração por  sutis manifestações da beleza. E tanto faz estar na cidade do interior, ou na metrópole.

Quando morava em Sampa foi a vez céu cinzento a despertar  do torpor  das tardes solitárias. Nas ruas da Liberdade, com seus  signos budistas, decoração oriental na porta dos restaurantes e  inferninhos havia um quê de celestial.

A decadência, apesar de triste, tinha fogo, o  brilho da vida. Em pleno trânsito congestionado nas ladeiras estreitas, nos miseráveis imigrantes e suas expressões indefiníveis, nas bandeirinhas e lanternas de papel sobre abismos provocados pela falta de comunicação, pairava o mistério.

Enquanto isso, no espaço, nuvens imensas, grávidas, preparavam para se derramar no ar gelado,  sobre os enfeites vermelho e branco, sobre pardaizinhos em curtos e prazerosos vôos.

Beto adorava banhos de chuva e caminhar na enxurrada. Cenário perfeito para a intensidade da paixão pela pintura, seu fascínio naquela época. Também lá, o céu tinha magia.

A diferença talvez fosse  a ausência do embalo preguiçoso da  rede. Ou seria a ausência dessa vontade de perseguir seus sentidos com lupa e guardar, com palavras, cada nuance das cores destes céus, que tem hoje?

Nas esquinas da Boca do Lixo, entre neons e garoa, assistiu namoros de prostitutas, vai e vem da venda de drogas, viciados no jogo do bicho fazendo sua fezinha.

Conheceu Celeste nesta época. Ela vivia no quartinho de um beco repleto de casarões despencando.

A moça sonhadora, de olhar morno, melancólico, adorava  ouví-lo,  nas tardes úmidas,  enquanto bebericava o chá que trazia na garrafa térmica. Pedia sempre que ele lhe contasse mais sobre outros céus.

Abria o sorriso e parecia menos feia quando o rapaz descrevia, oferecendo milhares de adjetivos à aurora e ao crepúsculo que incendeiam o espaço à beira dos rios Araguaia e Tocantins . 

Ou  aqueles que enternecem, e semeiam lendas, como os da lagoa dos Kamayurá, no Parque Indígena do Xingu , em outros brasis de distantes noites estreladas, mornas e perfumadas.

Celeste entrava devagarinho no ateliê. Pedia licença e ficava parada em pé, esperando que ele largasse o desenho e puxasse conversa. Não falava  de si. Queria ouvir a descrição exagerada dos céus das cidades onde Beto viveu.

Às vezes, no meio da faxina, ela juntava os tubos de tinta e lápis colorido, mostrando cores de uma composição imaginária e fazendo trocadilhos com seu nome.

Beto só soube que a moça estava condenada tempos depois, quando sumiu de vez. Uma  menina de rua trouxe a notícia de que estava morta. "Voou de um prédio", disse a ele. "Não suportou  a idéia de estar contaminada."

Celeste preferiu mergulhar no azul  à enfrentar  a Aids, chorou o rapaz, misturando tintas e saudade.  Fechou os olhos, e a dor despencou, fogo e água, - feito uma terrível tempestade- sobre sua juventude.

 

 

outubro de 2004

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